Imagem de Netuno, um gigante gasoso, com a nova técnica do VLT (Fonte: ESO)
A imagem acima é considerada a melhor captura de Netuno já feita em todos os tempos. Ela foi conseguida pelo instrumento MUSE - Multi Unit Spectroscopic Explorer instalado no VLT - Very Large Telescope¹ fazendo uso de um novo instrumento chamado GALACSI - Ground Atmospheric Layer Adaptive Optics for Spectroscopic Imaging que integra o sistema de Óptica Adaptativa.
Você já ouviu falar de Óptica Adaptativa? Trata-se de uma incrível técnica que melhorou a qualidade das imagens capturadas por telescópios terrestres.
Detalho tudo a seguir. Começo denunciando uma grande inimiga dos astrônomos: a turbulência atmosférica.
Turbulência atmosférica
No post anterior, onde mostro a minha primeira astroimagem (amadora) de Marte com telescópio, escrevi:
"Quando observamos um astro daqui da Terra, o fazemos através da atmosfera, a camada de ar que envolve a Terra. Só que na atmosfera temos correntes de ar o tempo todo. Este movimento contínuo das partículas de ar faz com que as astro imagens captadas por telescópios em solo terrestre fiquem "tremulando", como se tivéssemos observando o astro através de uma camada de água em movimento. Essa turbulência atmosférica atrapalha bastante os registros astrofotográficos."
Uma estrela é, na prática, como um "farol" gigante sempre acesso. Logo, não fica acendendo e apagando de forma intermitente. Mas, vista da Terra, através da atmosfera, o "farol" estelar parece piscar. É a turbulência atmosférica interrompendo a luz que vem das estrelas que, assim, cintilam, ou seja, piscam o tempo todo.
Para os poetas, o piscar das estrelas é inspirador.
Para os astrônomos, no entanto, é um verdadeiro terror!
Foi para se livrar da turbulência atmosférica que os cientistas criaram o HST - Hubble Space Telescope. Como ele orbita a Terra, muito além da atmosfera, pode olhar o céu sem turbulência alguma e conseguir imagens muito mais nítidas.
Hubble Space Telescope [Fonte: HST Site)
O HST - Hubble Space Telescope revolucionou a Astrofísica com imagens incrivelmente perfeitas. Mas ele começou a operar em meados dos anos 90 do século passado. De lá para cá, os cientistas que estão sempre inovando criaram uma técnica revolucionária chamada Óptica Adaptativa que usa um inteligente "truque" óptico que permite anular os efeitos da turbulência atmosférica para conseguir imagens como se o telescópio em solo estivesse no espaço.
Confira, a seguir, mais detalhes da revolucionária técnica.
Como funciona a Óptica Adaptativa?
Um feixe laser projeta uma estrela guia (Fonte: ESO)
A técnica consiste em apontar um feixe laser para cima e criar uma estrela guia artificial. Monitorando em tempo real os efeitos da atmosfera sobre esta estrela artificial que, por ter sido criada é bem conhecida, é possível descobrir que defeito a atmosfera está provocando na imagem dela. Daí cria-se um "antídoto", ou seja, faz-se um cálculo para "descontar" o defeito atmosférico na imagem da estrela guia.
Mas a ideia não é fazer uma correção da imagem via software, o que seria uma técnica de pós processamento. A Óptica Adaptativa vai além e é capaz de alterar a forma do espelho primário¹ do equipamento, corrigindo-o para anular os efeitos atmosféricos em tempo real. Note que não é capturada uma imagem defeituosa que é posteriormente corrigida. A correção é feita em tempo real e sobre a óptica do telescópio para que a imagem capturada já seja a mais perfeita possível.
Por isso os enormes espelhos dos telescópios modernos não são uma peça única mas uma espécie de "colmeia" feita por trechos hexagonais de espelhos que se encaixam. E cada pedaço (ou peça) hexagonal do espelho é fixada individualmente a motores sensíveis que, controlados por um complexo algoritmo, podem mudar as suas inclinações. Desta forma, o enorme espelho, feito de peças menores separadas, pode ter a sua curvatura ajustada sutilmente e em tempo real para corrigir as imagens distorcidas pela turbulência atmosférica. Incrível, não?
GALACSI
O novo sistema instalado no VLT, com quatro feixes laser (Fonte: ESO)
O MUSE - Multi Unit Spectroscopic Explorer montado no VLT - Very Large Telescope trabalha com a unidade de Óptica Adaptativa chamada GALACSI .
A GALACSI, construída pelos engenheiros do ESO - European Southern Observatory na sede em Garching, Alemanha, usa 4 feixes laser de sódio (daí a cor amarela) para criar 4 estrelas guia e fornecer Óptica Adaptativa aos instrumentos do Telescópio Principal nº 4 do VLT.
O MUSE é o primeiro instrumento a usar a GALACSI e, portanto, passa a ter agora dois modos de óptica adaptativa: o Modo de Campo Largo e o Modo de Campo Estreito.
Segundo o site oficial do ESO, "o Modo de Campo Largo do MUSE juntamente com o GALACSI em modo de solo corrige os efeitos da turbulência atmosférica até 1 km acima do telescópio, para um campo de visão relativamente amplo. O novo Modo de Campo Estreito que usa Tomografia Laser³, no entanto, corrige a turbulência atmosférica que ocorre por cima do telescópio a todas as altitudes, dando assim origem a imagens muito mais nítidas, embora numa região do céu menor. Com esta nova capacidade, o telescópio de 8 metros atinge o limite teórico de nitidez de imagem, não estando assim limitado à distorção atmosférica, algo muito difícil de conseguir no óptico, mas que fornece imagens comparáveis, em termos de nitidez, às que são obtidas com o Telescópio Espacial Hubble da NASA/ESA. Esta nova tecnologia permitirá aos astrônomos estudar com um detalhe sem precedentes objetos celestes tais como buracos negros supermassivos no centro de galáxias distantes, jatos emitidos por estrelas jovens, aglomerados globulares, supernovas, planetas e seus satélites no Sistema Solar, entre outros."
Confira aqui todos os instrumentos individuais que operam no VLT e fornecem Óptica Adaptativa, incluindo o GALACSI.
Comparativos de várias capturas de Netuno
A imagem de Netuno lá do topo do post é um marco histórico na técnica de astrofotografia terrestre pois apresenta uma riqueza de detalhes nunca antes conseguida por outros telescópios, incluindo o HST.
Veja, abaixo, a comparação da melhor imagem de Netuno feita no VLT com a nova técnica e a melhor imagem de Netuno feita pelo HST.
A qualidade da imagem do VLT, com a nova ténica, supera a qualidade do HST (Fonte: ESO)
Incrível, não? Para você ter uma melhor ideia da "mágica" que a técnica consegue, veja abaixo um comparativo da mesma captura com e sem a Óptica Adaptativa.
Comparativo: a mesma imagem, com e sem a Óptica Adaptativa (Fonte: ESO)
Como não gostar da Ciência?
Como não reconhecer a incrível capacidade de superação de obstáculos dos cientistas?
Graças à Óptica Adaptativa e sua evolução, o VLT, com espelho primário de 8,2 m de diâmetro, consegue hoje a partir da Terra imagens melhores que do HST que tem espelho primário de 2,4 m de diâmetro e está no espaço.
ELT: vem aí um gigante
ELT em comparação com os quatro telescópios do complexo VLT e a estátua da Liberdade. Concepção artística. (Fonte: ESO)
Vem aí o ELT - Extremely Large Telescope (Telescópio Extremamente Grande, em português), novo telescópio do ESO. Ele terá espelho primário de 39 m e será instalado no Cerro Amazones, Chile.
A técnica por trás do GALACSI foi desenvolvida para ser usada futuramente no ELT. Mas já está em pleno uso, sendo testada e mostrando a que veio no VLT.
O ELT, com design de cinco espelhos, usará Óptica Adaptativa com 6 feixes lasers, ou seja, 6 estrelas guia.
Segundo dados do ESO - European Southern Observatory, "O ELT colectará 100 000 000 vezes mais luz que o olho humano, 8 000 000 mais que a luneta de Galileu e 26 mais que um único telescópio do VLT. De fato, o ELT colectará mais luz que todos os telescópios combinados da classe dos 8-10 metros que existem na Terra."
Já imaginou que salto gigante a Astrofísica e a Cosmologia darão a partir do momento em que o ELT estiver operando?
O design de cinco espelhos do ELT (Fonte: ESO)
Se quiser acompanhar mais de perto o desenvolvimento do ELT, siga este link que coleciona as matérias jornalísticas (press releases) sobre este gigante empreendimento científico.
E o Brasil no ESO? Vergonha!
(Fonte da Imagem: Pixabay)
Você deve ter ouvido falar que em meados de março de 2018 o Brasil foi expulso do ESO. A notícia de que o Brasil foi acusado de caloteiro por não cumprir com seus compromissos financeiros com este observatório europeu correu os noticiários. Mas muita gente não teve nem como dimensionar o tamanho do problema e a real importância que essa quebra de contrato científico teve para nosso país. Aproveito esta oportunidade para tentar dar uma melhor dimensão da incompetência de gestão de quem dirige um país que se autodenomina emergente mas que tem andado para trás.
O Brasil, desde 2010, início do acordo, era o único país-membro não europeu do ESO. Com este acordo, os cientistas brasileiros da área passaram a ter outro status no mundo científico. Nossos cientistas podiam sentar-se à mesa de negociações, participando de todas as decisões sobre o futuro do ESO. E tinham grande tempo de uso de toda a infraestrutura de telescópios que, neste texto, ainda que de forma superficial, tento dimensionar. As empresas de tecnologia e engenharia do Brasil podiam participar de licitações para desenvolver novos equipamentos e novas tecnologias. E por aí vai...
Esqueça tudo isso! Graças aos nossos (des)governantes, que só enrolaram e não pensam no futuro da nação, o Brasil foi gentilmente convidado a se retirar do ESO. E está oficialmente fora de tudo o que por lá acontece, incluindo a construção do ELT que vai envolver ainda muita inteligência.
Percebe o tamanho do retrocesso? Consegue mensurar o golpe que a Ciência brasileira de ponta levou dos nossos (des)governantes?
Indico, para quem ainda não viu, a leitura do artigo “Direita, Esquerda e indecisos, o Brasil precisa de Ciência” publicado em Carta Capital em 21/06/2018 e que eu já havia indicado anteriormente no post Sabe de quem? que discute a importância da Ciência para o mundo.
Abraço astronômico do prof. Dulcidio. E Física na veia!
¹ O VLT é um complexo de quatro telescópios de 8,2 m de diâmetro cada um. Cada um dos quatro telescópios tem um segundo telescópios menor auxiliar de 1,8 m de diâmetro. Os quatro maiores telescópios podem operar individualmente ou em conjunto quando então equivalem a um telescópio muito maior e de melhor resolução. O VLT fica no ESO - European Southern Observatory instalado nas montanhas do deserto de Atacama, em Cerro Paranal, Chile.
² Os telescópios refletores em geral têm um espelho maior chamado primário que coleta e concentra a luz dos astros. Em geral, um segundo espelho, chamado secundário, redireciona a luz capturada pelo espelho primário para uma lente (ocular) ou, no caso dos telescópios profissionais, para sensores (já que não existe exatamente uma lente ocular por onde alguém vai olhar e sim um sensor que vai enviar as imagens para um sistema computadorizado). Nos telescópios profissionais podem existir outros espelhos que guiam a luz captada pelo telescópio até os diversos instrumentos que vão analisá-l e registrá-la. A Óptica adaptativa, em geral, atua no espelho primário. Mas também pode atuar no secundário.
³ A turbulência atmosférica varia com a altitude. Algumas camadas da atmosfera causam mais degradação dos raios luminosos vindos do espaço do que outras. A Tomografia Laser é uma nova e complexa técnica de Óptica Adaptativa que pretende corrigir as turbulência em várias camadas atmosféricas. Em geral, em Modo de Campo Estreito, o MUSE/GALACSI trabalham com faixas da atmosfera a 0 km (próxima ao solo) a 3 km, a 9 km e a 14 km de altitude. Um algoritmo de correção é otimizado para estas quatro camadas (ou altitudes), o que confere uma qualidade de imagem espetacular e bastante próxima do limite teórico de resolução do telescópio.
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@fisicanaveia
Que artigo interessante, parabéns, intriga durante a leitura!
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