Resposta Aberta a Comunidade Gildot

in portugal •  8 years ago 

Caros colegas:

Permitam que comece assim esta atrasada resposta a uma carta aberta que,

mais do que, e apesar de dirigida a mim pessoalmente, foi uma carta aberta

‘a comunidade Linux e, em particular, ‘a comunidade Gildot.”

E’ nestes termos, como colegas de profissao, de faculdade, de hobby ou

de Gildot, que quero dar resposta ‘as questoes pertinentes que foram

colocadas, nomeadamente a uma hipotetica obrigatoriedade de defesa

incondicional do Linux.

Uso o Linux há praticamente 10 anos. Uso outras versoes de Unix (DG/UX,

HP/UX, Irix, Minix, Xenix, SunOS, Coherent) há quase 15 anos. Tive a sorte

de poder usar a Internet ainda na Universidade, quando esta começava a

ganhar força, e de ter tido bons mestres que a conheciam e usavam e a

divulgavam, tanto aos alunos como ao publico em geral (estou a falar,

nomeadamente, do prof. Legatheaux Martins). Tive a oportunidade (que,

passe a imodestia, soube agarrar) de criar uma das primeiras empresas

de Internet em Portugal.

Tudo isto não me dá o dom da verdade absoluta ou a invulnerabilidade

a criticas. Muito menos justifica admiracao ou faz das minhas palavras

“exemplos” para outros. Recuso claramente qualquer estatuto de “fazedor

de opinioes”, ainda mais quando isso hipotetica ou aparentemente me

limita ou limitaria nas afirmacoes ou “exemplos” que dou, para novos

ou velhos utilizadores. Nao aceito que o facto de ter estado no sitio

certo, na altura certa e com os ensinamentos certos, me limitem o

direito a debitar cretinices, bujardas, opinioes ou posturas, presentes

ou futuras. Nalgumas estarei certo; em muitas estarei errado; cada um

retirará o que lhe interessar. Mas não quero estar “certo”, ter de estar

sempre “certo”, ter de dar o “exemplo”, ter de pensar em dizer o mais

“correcto”, estar sujeito à logica do “uma pessoa naquela posicao nao

pode dizer o que quer; tem de ter cuidado com o que diz”.

Admito no entanto que o peso da experiencia adquirida acrescente algum

valor ou alguma credibilidade ao que digo. Nesse caso, como se costuma

dizer, não fala o Mário Valente: fala a voz da experiência. Se o valor

dessa experiencia acumulada servir para que outros (novatos ou não)

evitem erros, aprendam alguma coisa ou façam melhor, ainda bem. Se outros

tiverem experiencias divergentes e chegarem à conclusao que a minha

experiencia não se aplica, melhor ainda. Dos que emitem opinioes que

nao sao baseadas em experiencias ou factos nem vou falar. Neste sentido,

repito, aceito ter alguma responsabilidade naquilo que digo; aceito que

aquilo que digo seja usado como exemplo pelos novos utilizadores; mas

nao aceito qualquer obrigatoriedade de garantir a correccao, a certeza

ou os efeitos pessimos ou beneficos desses exemplos. Cada um podera’

e devera’ tirar as suas conclusoes.

Vem isto a proposito da interpelacao que me foi feita que advogava que

eu, como Linux advocate que sou (e sou…), deveria sempre defender o

Linux, defender inclusive e nomeadamente a sua utilizacao obrigatoria,

imprescindivel e dogmatica no desktop, sob pena de “constituir um pessimo

exemplo para os novos utilizadores”. Eu seria, afinal um cinico que se

afirmaria “utilizador e defensor” do Linux, quando na realidade nao o era.

Ora se houve coisa que aprendi (e aqui entra a minha experiencia, que cada

um tomara’ e devera’ tomar na medida que achar necessaria) durante os meus

anos de tecnologias de informacao, e’ que nao existe nenhuma ferramenta

“melhor para tudo”. Como se diz na giria, “there is no silver bullet”.

A vida real e’ exemplo disso: o Ferrari nao e’ “o melhor carro do mundo”;

por exemplo, e’ do pior que ha’ para fazer todo-terreno (para alem de que

tem um motor muito barulhento e o habitaculo esta’ mal insonorizado…);

em contrapartida um Jeep nao e’ “o melhor carro do mundo” se se pretende

fazer uma viagem de varias horas; um martelo e’ do pior que ha’ para

meter parafusos; mas e’ porreiro para pregar pregos.

Acho por isso que o Linux deve ser defendido quando pode e quando deve

ser defendido. O Linux e’ uma excelente ferramenta para resolver um

grande conjunto de problemas. Mas nao e’ a ferramenta para resolver

TODOS os problemas. Acho alias que algumas posicoes tomadas por

acerrimos convertidos ao Linux (tipicamente recentemente convertidos)

sao na realidade prejudiciais ‘a propria fama do Linux. Das duas uma:

ou porque os zelotas prometem mais do que o Linux na realidade pode,

consegue e deve fazer, ou entao porque a imagem passada de “fanatismo”,

de “cegueira” e de “falta de compromisso” por parte de quem adopta

posicoes Linux-fanaticas acaba por provocar uma ideia errada do Linux

e da comunidade. Esta minha opiniao e’ confirmada por artigos nos meios

de comunicacao social e por conversas com responsaveis da industria. A

imagem que tipicamente e’ passada e’ a dos “maluquinhos do Linux”.

Nao acho em particular que o Linux desempenhe bem o papel de

sistema operativo de desktop, ou que possa ser um papel que possa

vir a desempenhar bem. Nao ha’ nada de endemico no Linux que provoque

isto. Nem no sistema operativo, nem no seu modelo de desenvolvimento,

nem nos programadores que a esse objectivo se dedicam. Da mesma maneira

que nao ha’ nada que impeça que se faça uma viagem de várias horas num

4×4; da mesma maneira que os “carochas”, apesar de obsoletos, continuam

a circular; da mesma maneira que os fanaticos dos Dyane 2CV continuam

religiosamente a cuidar das suas maquinas e a muitas vezes produzir

peças manualmente. Os programadores que se dedicam a produzir desktops (e

este sim e’ um dos problemas do Linux no desktop…) ou aplicacoes para

o desktop desenvolvem livremente uma tarefa que muito admiro e aprecio;

longe de mim querer que produzam aplicacoes para o Windows. Mas fazem-no

por iniciativa individual e porque isso lhes resolve um problema pessoal,

produzindo tambem algum gozo pessoal. Se perdem tempo, e’ o seu tempo;

se outros perderem tempo a usar as suas aplicacoes, e’ o seu tempo.

Esta questao nao e’ de somenos importancia. E’ que na resolucao de um

qualquer problema usando uma qualquer tecnologia (ferramenta), os dois

unicos factores a ter em conta nao sao apenas estes dois: A) problema, B)

tecnologia. Existe um terceiro factor que e’ o actor, o ser humano que

emprega B) para resolver A). Usar um livro para resolver o problema da

transmissao do conhecimento nao e’ solucao se o “actor” for analfabeto;

usar a um video para contar uma historia nao e’ solucao se o “actor”

for cego e surdo; usar confetti para limpar o cu nao e’ solucao se o

“actor” for um elefante.

O que quero dizer com isto e’ que o Linux “nao e’ grande malha no desktop”

porque os 2 unicos factores a considerar nao sao o A) desktop e o B)

Linux. O factor C), o “actor”, o utilizador da “solucao” para resolver

o problema tambem tem a ver com o assunto.

O que se passa e’ que o Linux tem um conjunto de caracteristicas que,

quando aplicadas ao problema “desktop” e assumindo um actor/utilizador

“banal”, provocam resultados inesperados, inusitados e imcompreensiveis

para esse mesmo utilizador. E’ como apresentar a um lavrador,

que precisa de um tractor para acartar palha, um camiao TIR. E’-lhe

imcompreensivel. Faz mais do que o que ele esta’ ‘a espera. Acarta mais

palha do que a que ele tem. E para ajudar nao passa no caminho la’ da

quinta. O Linux no desktop para um utilizador “banal” e’ desnecessario,

incompreensivel. Para o “compreender” o utilizador tem de vir muito

mais atras para compreender um conjunto de conceitos que justificam o

Linux. E o utilizador (um economista, um advogado, um marketeer, uma

secretaria, um director financeiro) tem mais que fazer do que gastar

tempo e neuronios a perceber solucoes para problemas para os quais se

esta’ a marimbar. Ele quer e’ resolver o SEU problema.

Um exemplo especifico e’ o multitasking. Vamos ser honestos: o

utilizador comum nao precisa de multitasking para nada. Quando muito

precisa de double-tasking (ou talvez task switching) para poder passar

do Excel para o Solitaire rapidamente. O Linux parte do pressuposto que

o multitasking e’ importante. E e’ isso que, para nos, fans do Linux,

tambem conta na utilizacao do Linux. Temos varias tasks simultaneas em

aberto e gostamos da proteccao anti-crash que isso nos proporciona. O

utilizador comum tambem ? Pois claro, tambem, tambem lhe da’ jeito “o

computador nao crashar”. Mas se isso significar ter de perceber o que e’

que sao cronjobs, o que e’ que sao processos e como e’ que se faz o kill

de um deles, porque e’ que o computador agora esta’ a mexer no disco

se eu nao estou a fazer nada e porque e’ que o computador agora esta’

mais lento, entao nao, o utilizador comum esta-se a cagar para o crashar

do computador porque ao fim e ao cabo so’ corre o Solitaire e o Excel e

o computador so’ crasha uma vez por dia. Sempre e’ melhor do que ter que

apanhar com essa historia toda do multitasking, dos processos, dos crons,

do background e outros que tais.

Nao e’ a unica razao. Sem duvida que o Linux no desktop tem vindo

nos ultimos tempos a tornar-se cada vez mais facil de instalar e de

usar. Mas em contrapartida a uma serie de exemplos que se podem dar

(e foram dados) podem continuar a referir-se problemas que dificultam a

utilizacao generalizada do Linux no desktop. Por exemplo, ja’ referido

acima, a multiplicidade de desktops para o Linux. Sim, para nos isso e’

espectacular. Podemos escolher e personalizar a nossa maquina. O que temos

de perceber e’ que para o utilizado banal e normal e nomeadamente para as

organizacoes onde o trabalho precisa de ser coordenado e standardizado

essa multiplicidade de desktops e’ confusa. Gnome, KDE, XWindows,

Afterstep, etc. Qual e’ que uso afinal ? E porque e’ que ha’ tantos

? Outro exemplo: estou a usar o KDE. No Kate (editor de texto) o menu item

que escolho para fazer Save esta’ debaixo do “File”. No Konqueror o “Save”

esta’ debaixo do “Location”. No Xpdf e’ preciso clicar no botao direito

do mouse para ter o menu. O Gimp entao e’ security through obscurity:

usa o modelo de “multiple windows on the desktop” que e’ reconhecido

pelos utilizadores do Mac mas nao pelos do Windows e o “Save” tambem so’

esta’ acessivel com um clique do botao direito do mouse na imagem criada.

Esta mistura de modelos, conceitos e paradigmas e’, para nós fans do

Linux algo com que nos deleitamos, que nos da’ gozo, com o qual estamos

dispostos a gastar tempo. Nao e’ algo que agrade ao utilizador comum. E

e’ isso que impede que o Linux seja ou venha a ser “grande malha no

desktop”. A sua propria flexibilidade, dinamicidade e configurabilidade

impede a sua facil, imediata e rapida disseminacao e compreensao

por um publico que tem mais que fazer do que “gastar tempo com essas

minhoquices”.

O Linux tem de continuar assim e deve continuar assim. Aparecer um

unico standard de desktop seria adverso aquilo que gosto e que gostamos

no Linux. Mas temos que ter a nocao que essas mesmas caracteristicas

impedem e nao justificam a sua adopcao em larga escala no desktop. E’

uma ferramenta “grande” demais para o “problema” em causa, tendo em conta

que o “actor” quer resolver um (1) “problema” e nao ultrapassar dez

(10) “problemas”. No futuro da Informatica, como no presente, muitos

computadores do mundo continuarao a correr Windows e MacOS e alguns

correrao Linux; muitos servidores correrao Linux e outros sistemas e

poucos correrao MacOS.

Este raciocinio aplica-se a mim proprio. O facto de existir um leitor

de email que pode ler as minhas mailboxes do Eudora nao implica que

necessariamente agora tenha de mudar para ele. O Eudora esta’ num Windows

num portatil. Nao tenho problema nenhum neste momento (por acaso ate’

tenho…) mas ia arranjar “lenha para me queimar” a instalar Linux no

portatil ? O que e’ incrivel e’ que ja’ o fiz. Lixei o disco todo e

estive 1 semana sem maquina a fazer recover da tabela de particoes e dos

ficheiros. Ou seja, nao faz sentido ter zero (0) problemas e ir arranjar

um (1) problema (instalar Linux no portatil) apenas porque sou um “fiel

utilizador e defensor do Linux” e agora ja’ existe uma aplicacao que

transfere as mailboxes do Eudora. Isto sem falar nos possiveis problemas

inesperados e consequentes: sera’ que transfere mailboxes com quase

100 Mega ? sera’ que o Linux corre direito no portatil Pentium II c/

64Mb ? E isto sou so’ eu. Imagine-se um utilizador banal. Tem mais do que

fazer. Alias, eu proprio tenho mais do que fazer. Sao exercicios/problemas

giros para resolver durante um fim de semana, em casa. Mas durante a

semana, na empresa, o meu tempo vale mais dinheiro do que isso.

‘A pergunta de se ainda preciso mesmo do Windows, respondo com a afirmacao

que todos, com certeza faremos: ainda preciso, uma vez por outra. Existem

problemas para os quais apenas existem ferramentas em Windows. Foi dado

o exemplo dos GIS. Outros exemplos existirao. O que e’ comico e’ nós,

fanaticos do Linux, apenas considerarmos excepcoes ‘a regra do “Linux

para tudo” os nossos proprios casos especiais. E nao sermos capazes de

compreender que o GIS de um homem e’ o Office do outro.

O facto do Linux ser open source e de gostarmos

disso nao deve ser usado, ‘a mistura com referencias

a “liberdade”,”monopolios”,”democracia”,”poder”, para defender

a utilizacao indiscriminada do Linux. E’ como justificar que matar

pessoas disseminando o virus da rubeola (que qualquer pessoa pode fazer;

open source) e’ legitimo por oposicao ao uso da bomba atomica (que tem

custos; proprietario). A mistura das caracteristicas tecnologicas do

Linux com as suas caracteristicas politicas e’ um desserviço que uma

linha de informaticos de “esquerda” presta ao Linux. E’ um dos factores

que leva o meio empresarial a “desconfiar” dos Linux advocates. Que

fique claro: o meio empresarial, no qual me incluo, esta-se a marimbar

para as caracteristicas politicas do Linux. A economia e as empresas

nao sao democracias; nao sao espacos para “liberdade”; nao sao espacos

para discutir ou prevenir “concentracoes de poder”. O objectivo de uma

empresa e’ precisamente ganhar poder ‘a custa de processos de decisao

nao democraticos. A batalha e a vitoria do Linux nestes meios, portanto,

tem de ser feita ‘as custas das suas caracteristicas tecnicas e nao de

ideais individuais.

E repito: uma coisa e’ o Linux nas minhas empresas; outra coisa e’

o Linux em minha casa, para mim, para o Mario Valente.

A vitoria e a disseminacao do Linux sera’ feita, repito, atraves

da divulgacao deste quando e onde deva ser aplicado e nao “porque

sim”. A melhor arma dos defensores do Linux e’ serem proficientes

em varias tecnologias, aceitarem a utilizacao simultanea destas, e

emitir opinioes abalizadas e isentas sobre o seu uso (ou nao) quando

necessario. Essa heterogeneidade e liberdade de pensamento e escolha e’

que sao factores fundamentais para a aceitacao dos defensores de Linux

e do proprio Linux. Essa mesma diversidade de utilizacao de tecnologias

e’ que sera’ coincidente com o grau de progresso ou atraso de um povo,

e nao uma suposta “especializacao” no Linux. Mesmo assim ainda prefiro

os “atrasados” portugueses a desenrascarem-se em ingles, frances e

“espanhuel” do que os “progressistas” alemaes que nao falam “boi” de

mais linguagem nenhuma.

Temos todos, Gildoters e Linuxers, mais do que quaisquer outros, o dever

e a obrigacao de sermos proficientes em todas as tecnologias disponiveis

e aconselharmos com bom senso a melhor escolha em cada caso. A defesa

cega de uma qualquer (seja MS ou U*IX ou qual for), independente de uma

analise isenta, apenas nos prejudica como profissionais, como comunidade

e acaba em ultima analise por prejudicar a propria ferramenta de que

tanto gostamos.

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