Redução da maioridade penal - na prática a história é outra

in pt •  6 years ago  (edited)

Uma boa parcela da população acredita que a maioridade penal deva ser reduzida para 16 anos. Outros acham que até menos de 16 anos. Alguns ainda afirmam que crianças devam ser responsabilizadas por seus atos.

Eu entendo todos os argumentos de quem pensa assim. Penso na sensação de impotência, de injustiça, de indignação. Na revolta que emerge diante da impunidade de uma pessoa que comete um crime. Se até uma criança sabe o que é certo e errado, não deveria haver nada que justificasse sua imunidade diante da lei. Em teoria, sim.

Mas na prática a história é outra.

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Sou agente pública da assistência social. Chega na minha mesa um prontuário novo de uma família que devo acompanhar. No meio da papelada encontro um B.O.

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Mais um criminoso que deveria ser preso porque sabia que era errado traficar (poderia ser roubar, furtar, agredir, matar, etc) e fez mesmo assim! Chega de impunidade! - É o que pensamos. Então você começa a conhecer a família e descobre que o irmão mais velho está internado na Fundação CASA pelo mesmo crime. Um exemplo de irmão.

Mas que mãe é essa, que tem dois filhos adolescentes no mundo do crime? Opa, chega na casa e a mãe está de cama há meses, porque durante uma cirurgia esqueceram uma gaze dentro dela e desde então foi só complicação atrás de complicação. Dois bebês para cuidar, não conseguiu vaga na creche.

Vamos falar com o pai, porque essa situação está complicada, mas o pai trabalha em dois empregos braçais para conseguir dar conta de todas as despesas. O pouco que consegue ficar em casa é para o merecido e necessário descanso.

E a família extensa, será que não poderia dar um suporte? Vai procurar saber e descobre que tem um monte de gente presa, crianças acolhidas, denúncias de maus-tratos... não, melhor não.

Aí você olha para aquele criminoso de 11 anos, pensa em toda a m* que ele passa na vida, sem UMA ÚNICA PESSOA de referência, que possa orientar, servir de exemplo, dar atenção. Ele nunca teve a oportunidade de conversar com alguém que tivesse concluído os estudos. Que tivesse conseguido um emprego bom e que pagasse bem. Que tivesse dito a ele que era possível viver a vida de um outro jeito. Que jeito, se o único jeito que ele aprendeu foi esse...

Até que ponto ele realmente está consciente de suas escolhas, se ele nunca, sequer, teve direito à alguma escolha? Ah, mas ele sabia que era errado. Não. Sinto dizer, mas ele não sabia que era errado. Mesmo que ele saiba que é um crime, ele não sabe que é errado praticar um crime, pois desde que nasceu o mundo e todos à sua volta praticam vários tipos de crimes contra ele, e ninguém nunca foi punido por isso. Ele não sabe que é errado atentar contra a dignidade e a integridade do outro, pois ele mesmo nunca teve sua dignidade e integridade protegidas. Então você olha aquela pessoa de 11 anos, e começa a ver uma criança que nunca foi realmente cuidada, protegida e orientada.

Mas não, eu não vou levar para a minha casa e cuidar. Nem acho que você ou qualquer outra pessoa deva fazer isso. Mas se pudermos entender que a redução da maioridade penal é apenas um paliativo medíocre e superficial para um grave problema estrutural, quem sabe a gente pára de discutir o sexo dos anjos* e passa a discutir sobre como as nossas práticas sociais contribuem para que essa história se repita geração após geração.

Na prática, a história poderia ser outra.

*perder tempo discutindo um assunto absolutamente inútil e impossível de ser determinado, quando existem problemas mais importantes. fonte

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Saudações, querida senhorita aliny

Gostei da tag que você inventou einh. Realmente, crescer sem referência positiva é algo muito ruim. Noto que esse discurso da redução da maioridade penal é higienista, pois, quer apenas retirar de circulação o que traz dano á sociedade. Por um lado eu concordo e em outro eu discordo. Eu não consigo ter a visão da esquerda de ser totalmetne á favor dos direitos humanos, nem a visão da direita que aplica direitos humanos para "humanos direitos". Acho as duas visões sobre isso extremistas. Nesse caso que você citou, especificamente esse garoto com drogas, poderia receber uma educação com boas referências para crescer como indivíduo. Eu não me lembro o nome do filme, mas, há alguns anos, vi um filme na tv sobre um garoto de rua que furtava ser transformado em um escritor, ao entrar em contato com uma antropóloga francesa que cuidou dele, quando ele invadiu a casa dela... Talvez você conhece essa filme, é baseado em um livro, em que o próprio escritor conta sua história.

Nesse caso do filme e livro, ocorreu uma bela transformação. Aí, eu fico mais próximo á esquerda. Eu sei muito bem a diferença entre ter uma formação sólida no meio familiar ou, crescer em família com alto índice de vulnerabilidade. Quem cresce em famílias assim, fica exposto á muitas coisas ruins que as pessoas que não crescem não entendem, pois, não está no mundo delas. Eu mesmo não entendia antes de fazer psicologia, então, não julgo os que não entendem, porém, sei que traz muito sofrimento á vida desse pessoal.

Porém, olhando o outro lado, á jovens que, ou possuem índole má por questões relacionadas á psicopatia/sociopatia e foram expulsos da família, indo morar na rua, ou , jovens que introjetaram muita violência, como esses relacionados á trafico. Ser assaltado e violentado de alguma forma por esses jovens, que portam fuzil por exemplo, é o que faz com que eu não tenha uma visão tão "boazinha" como tem a esquerda, pois, eu já sofri em torno de 7 tentativas de assalto. Umas 3 ou 4 foram de menores de idade. Nenhum deles foi "bonzinho". O assalto não se consumou, pois eu consegui desviar de alguma forma, ou saindo correndo ou vendo que seria assaltado antes e desviando... mas, de uma forma ou de outra, eu vi nos olhos deles, principalmente os 2 com arma de fogo, que eles não estavam ligando muito para minha vida não... se fosse preciso, possivelmente iriam me ferir feio....

Então, eu sou do centro nessas questões. Inclusive, na maioria das questões da vida, me coloco de uma forma mais central. Acho que cada caso é um caso. Nesses casos de jovens infratores, o Estado poderia verificar um a um, com ajuda de psicólogos e assistentes sociais , a possibilidade da criança ser ou não reeducada ou realmente reclusa.... Mas, para isso, é necessário tempo, muitos profissionais, muita dedicação e dinheiro envolvido. Acho que o estado não quer gastar toda essa "energia", então, é mais fácil "limpar" o meio onde o crime ocorre....

Desculpe pelo tamanho da resposta, mas, eu acho esse assunto que você colocou bem interessante e eu já havia pensado nele!!!

Obrigado e boa noite

Olá @julisavio, não se desculpe pelo tamanho da resposta. Acho muito bom quando traz tantas reflexões, assim acrescenta novos pontos de vista à discussão. É sempre bem vindo. Eu não conheço esse livro e o filme, não que eu me lembre. Vou pesquisar depois sobre.

Mas é isso mesmo que você disse. Assim como você eu também consigo ver os dois lados da questão e também acho que cada caso é um caso. Acho que algumas pessoas chegam num ponto em que não podem mais ter liberdade sem algum tipo de acompanhamento sistemático (tenho muita dúvida sobre a "internação", às vezes tenho a impressão que é só um adiamento de um novo "confronto" desse adolescente com a sociedade), porque a chance de reincidirem ou agravarem sua conduta é muito grande. Mas também existem aqueles que só estavam esperando a oportunidade de fazer um curso, serem encaminhados para um programa de aprendizagem, etc. Não é tão fácil para eles correrem atrás dessas coisas sozinhos, quando foram criados por pessoas passivas e submissas ao contexto social onde estão inseridas. Mas sua conclusão é perfeita. Na dúvida e na falta de vontade de fazer a coisa direito, o Estado opta pela faxina. Mas até a faxina é mal feita, porque em pouco tempo a "sujeira" volta, e muitas vezes mais difícil de limpar. Complicado. Obrigada por ter vindo.

Acho que o estado não quer gastar toda essa "energia", então, é mais fácil "limpar" o meio onde o crime ocorre....

Sua frase acima citada explica perfeitamente porque acontece o tipo de atrocidade descrita nesse post.

Você tem razão, nosso estado, seja de "centro" ou de "direita", e muitas vezes mesmo de "esquerda", não quer usar seus recursos para o básico da população, preferindo atrapalhar e tirar a vida de quem deveria estar cuidando. Porque nosso estado é extremamente corrupto.

Afinal, esse mesmo governo só quer favorecer gente que nem você, que usa seu tempo livre pra digitar um discurso de 4 parágrafos sobre como "as coisas vão ficar assim mesmo", mas que tem dinheiro suficiente pra trocar "favores financeiros" com eles.

E mesmo sendo o ultra-favorecido, você nem sequer gasta um votinho sequer nesse post da @aliny, que como ela disse, é assistente social, e luta para que gente como esse menino de 11 anos possa mudar de vida e deixar de ser criminoso, apesar disso te beneficiar diretamente.

Afinal, você pensa igual ao seu governo, não é mesmo? É mais "fácil" empurrar a "sujeira" pra "debaixo do tapete"...

@felipejoys eu entendo que a cadeia das relações sociais é deveras complexa e isso inclui a todos nós. Mas as ligações de toda essa cadeia e suas interdependências, do começo ao fim, não são tão óbvias para todos. Aqueles poucos que conseguem perceber isso são os únicos capazes de suberter a lógica padrão das relações sociais contemporâneas. Tarefa de formiga...

E é isso. E o maior problema sobre essa questão não é que as pessoas não entendem, é que elas não se importam mesmo. São os mesmos que falam sobre meritocracia (céus, como odeio essa palavra hoje em dia) e acreditam que a base na vida de alguém não importa e ela pode facilmente mudar a sua terrível realidade. Claro, claro...

Encher prisão nunca é solução. Lembrando que cada preso na cadeia, é um custo a mais para os pagadores de impostos. O que se deve fazer é tirar do estado a responsabilidade pela educação das crianças e o povo passar finalmente a ter a consciência de propriedade e a defesa da mesma. Abraço...

Sim. E abrir a economia para que as pessoas possam empreender e prosperar. Liberdade civil + econômica, o combo que mais precisamos né. Rs

Por isso sou adepto a liberação dos entorpecentes. Ele estava vendendo algo que uma pessoa estava querendo, não há nenhum erro nisso. Se fosse uma bala, ou um doce, ele não seria punido por isso.
Sou adepto a crimes hediondos não haver maioridade. Se a criança matou a outra, ou um adolescente de 12 anos estuprou uma menina de 9, tem que ser punido a altura. Ladrão de galinha, como a gente fala no interior, não tem que ir para prisões onde se transformarão em ladrão com diploma do crime organizado.

Oi, @robertoueti! Também sou a favor da descriminalização. E também acho que tem muita lei idiota que vai além do que deveria em relação às nossas liberdade civis. Mas... o Estado é isso mesmo né. :(
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Não somente problemas sociais, mas qualquer problema.
Um exemplo que eu falo, se formos levar ao pé da letra, as regulamentações da ANVISA fazem toda Dona Maria que vende bolo pra fora, ser uma contraventora da lei.

Exatamente. Praticamente toda atividade econômica que emerge nos locais mais vulneráveis se torna uma contravenção, uma aberração que deve ser imediatamente extirpada ou regulada à mão de ferro. Nossa, isso é muito triste, @robertoueti.