Quando imaginamos nossa trajetória de vida tendemos a traçar uma linha reta, que parte do nosso nascimento como ponto inicial, seguindo para a infância, adolescência, vida adulta... e que se projeta para um futuro incerto e desconhecido, sempre nesse sucessivo desencadear de eventos marcantes e fases da vida. A marcação geralmente é cronológica; o tempo é a medida pela qual nos orientamos ao narrar a nossa história.
Porém, se pararmos para pensar, não somos e nunca fomos uma pessoa só, com uma única identidade e história de vida. Somos multifacetados, seres singulares justamente porque temos várias histórias diferentes e concomitantes, e que nem sempre se sucedem numa linha do tempo. Algumas se entrelaçam, outras divergem substancialmente. Algumas se mantiveram fixas em nossas vidas, enquanto outras foram intermitentes. Algumas fizemos questão de abandonar enquanto outras nos foi impossível esquecer. Mas todas nos marcaram de alguma forma. E em maior ou menor grau, nos fizeram sermos as pessoas que hoje somos.
Geralmente as pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade social possuem trajetórias de vida marcadas pela forte influência de fatores externos limitantes e extenuantes, e que geram uma sobrecarga mental no indivíduo. Muitas das suas histórias não foram resultado de escolhas voluntárias, e sim de meras reações frente aos estímulos aversivos com os quais foram confrontadas desde cedo. Não que a pessoa não tenha capacidade de tomar decisões, de refletir sobre seus atos, de analisar as consequências de suas atitudes ou de se responsabilizar por suas escolhas.
O que nos mostram os estudos sobre desenvolvimento humano, dentro da perspectiva da psicologia cultural, é que a presença contínua e massiva de muitos fatores de risco ao longo da vida, acaba por dificultar tais habilidades e também de reduzir a amplitude de conceitos como felicidade e liberdade. É quase como se a pessoa vivesse acomodada dentro de uma gaiola sem conseguir enxergar que existe um mundo lá fora, e que depende dela empreender sua fuga. É como se a gaiola fosse tudo que pudesse existir, e que "lá fora" fosse um espaço quase abstrato de tão longe que ele vai ser tornando com o tempo. Como se sua existência dependesse sempre de terceiros, como o Estado por exemplo.
As diversas histórias que formam sua trajetória acabam seguindo um mesmo storytelling padrão, condicionadas muito mais pelas circunstâncias em que se vive, do que pela criatividade e autonomia envolvidos num processo de decisão intencional e consciente. São os NPC´s da realidade. Programados desde a tenra infância, por sua família, pelos seus antepassados, pela sociedade, pelo Estado, etc, a repetir as mesmas ações de sempre. Você pode dropar vários itens raros e importantes na frente de NPC, e ele provavelmente seguirá impassível sem nem perceber o que aconteceu.
Uma forma de desprogramar as pessoas (e isso vale pare todos nós, independentes de contexto social), é incentivá-las a construir narrativas sobre suas trajetórias de vida. Não aquela narrativa linear que citei no começo do texto, mas a narrativa criativa, que mistura passado, presente e futuro. Que inclui elementos reais e imaginários. Que fala do que aconteceu e também do que não aconteceu. Do que poderia ter acontecido. É exercitar a reflexão sobre o caminho que lhe foi imposto mas também sobre as escolhas que poderia ter feito.
Comumente cada marco na nossa história é um evento que significou muito para nós, e eles funcionam como pontos nodais, de onde emanam diversas probabilidades de outras novas histórias, ou de novas etapas de histórias antigas. Quem se interessar por esse assunto pode ler Valsiner, é fantástica a visão dele sobre esse assunto.
Ao perceber que não somos obrigados a seguir um início-meio-fim previamente construído pela cultura e pela sociedade que vivemos, e que na verdade já somos fruto de uma narrativa caótica e de muitas possibilidades, aos poucos vamos entendendo o quanto é importante protagonizar a própria história para que pelo menos uma parte destas histórias que estamos vivendo e das que viveremos, seja de nossa própria autoria.
Vivem dentro de nós muitas pessoas, e ao narrar a história de cada um desses habitantes internos para nós mesmos, podemos escolher quais deles mais gostamos e que não abandonaremos, onde quer que a gente esteja, e onde quer que a gente vá.