Um pouco sobre Jeremy Bentham, Rikk Hill | AUDIOTEXTO | VOZ HUMANA

in pt •  6 years ago 

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Jeremy Bentham, além de figura das mais excêntricas do pensamento liberal e utilitarista, foi filósofo, jurista e um dos últimos iluministas a propor a construção de um sistema de filosofia moral, não apenas formal e especulativa, mas com a preocupação radical de alcançar uma solução prática exercida pela sociedade de sua época.

Ouça ao audiotexto acima, e acompanhe sua transcrição abaixo.

Eu gostaria de falar um pouco sobre o filósofo moral Jeremy Bentham.

Texto original em inglês de Rikk Hill, tradução de Fernando Moreno e narração de Alysson Augusto.

Eu gostaria de falar um pouco sobre o filósofo moral Jeremy Bentham, e por que ele tem um estranho status de celebridade entre pessoas que pensam como eu.

Jeremy Bentham viveu no final do século 18 e início do século 19, geralmente considerado como o fim do período Georgiano. Isso é importante. Este é o período em que Jane Austen escreveu todos os seus romances. A questão política global da época era a abolição do comércio internacional de escravos. 3% da população da Inglaterra e do País de Gales tinha o direito ao voto. Durante esse período, as revoluções Industrial e agrícola na Grã-Bretanha levaram a uma queda de 45% da força de trabalho dedicada à agricultura, para apenas 22% necessária para alimentar a nação. Na época, usar pouco menos de um quarto de sua população de trabalhadores para produzir comida era visto como nada menos que um milagre. Hoje, esse número é menor que 1%.

Ele viveu em um tempo muito diferente, é o que estou dizendo. Eu não sei como enfatizar isso o suficiente. É extremamente importante lembrar disso quando se pensa em Jeremy Bentham, porque sua produção intelectual é principalmente caracterizada por ser (a) totalmente insensata, e (b) chocante, além de estranhamente, estranhamente à frente de seu tempo.

Vamos lidar primeiro com as coisas mais malucas. Jeremy Bentham era um cara extremamente excêntrico, talvez melhor demonstrado pelo fato de eu passar por seu cadáver todos os dias. Está em uma caixa de vidro na College London. Ele instruiu que após sua morte, seu corpo deveria ser dissecado para a ciência médica, e, após isso, seu corpo taxidermizado deveria ser exposto. Ele chamou isso de “auto-ícone”; Por que construir uma estátua para alguém quando você pode apenas exibir seu corpo? Se você estiver perto de Fitzrovia em um dia de semana, venha ver isso.

Ele achava que os costumes e tabus sociais de seu tempo eram arbitrários, inúteis ou completamente errados, e os costumes e tabus sociais em torno da morte e dos mortos eram apenas um exemplo disso. Mais tarde, ele se fixou no papel dos corpos após a morte e sugeriu a decoração de espaços públicos com cadáveres mumificados em vez de árvores. Ele também dividiu sua cama com o porco que ele mantinha como animal doméstico, foi pioneiro em uma forma de jogging (que ele chamou de “circunvalação anteprandial”), e manteve correspondência, geralmente não-solicitada, com diferentes chefes de estado de todo o mundo relativa aos temas de reforma legal e constitucional.

Parte disso é de se esperar. Se você rejeitar as normas do seu tempo e tentar redefinir a ordem social a partir dos primeiros princípios, pode acabar dormindo de conchinha com um porquinho e escrevendo para o Presidente dos Estados Unidos sobre a codificação da common law inglesa. O que você pode também acabar inventando é muito do liberalismo ocidental do século 21, que é o que Bentham também fez.

Em certo sentido Jeremy Bentham literalmente inventou muitos dos conceitos que tomamos como dados, por ser o fundador do utilitarismo e um prolífico pensador iluminista. Mas há um outro sentido no qual, quase como que por efeito colateral, ele chegou a uma variedade de conclusões sobre a ordem social que não ganharia aceitação generalizada até décadas ou mesmo séculos após sua morte. Sufrágio universal, igualdade sexual, descriminalização da homossexualidade, abolição da pena de morte, bem-estar animal, divórcio sem culpados… a lista de coisas que ele essencialmente inferiu de primeiros princípios e que contrariava fortemente as normas culturais vigentes é impressionante.

Ele era notoriamente ruim em conseguir publicar seu trabalho, e quase tudo o que ele escreveu teve que ser compilado e publicado postumamente por amigos e protegidos. Muitos trabalhos editoriais foram feitos para tornar essas obras aceitáveis ​​para o público, a ponto de sua defesa da homossexualidade não vir à tona até 1931, mais de um século depois que ele a escreveu.

Muitas das ideias que ele defendeu fazem parte da sociedade em que todos nós crescemos, já há tanto tempo, que nem sequer as reconhecemos como escolhas ativas de como nossa sociedade é organizada, mas outras são idéias progressistas contemporâneas estranhamente específicas. Por exemplo, ele muito especificamente chamou a atenção para a promiscuidade sexual das mulheres como sendo julgada desproporcionalmente dura comparada com a dos homens. Ele alegou que havia outras normas, como a fidelidade sexual, que minavam quaisquer danos que pudessem resultar da promiscuidade sexual, e envergonhar as mulheres com base em seu apetite sexual apenas prejudicava a todos. Esse é um ponto que as feministas contemporâneas ainda precisam defender dois séculos depois. Com alguns pequenos ajustes, muito do que ele escreveu sobre sexualidade poderia ter saído diretamente de uma discussão contemporânea sobre liberdade sexual (no original, sex-positivity). Um lembrete: ele estava escrevendo isso mais ou menos na mesma época em que Jane Austen escrevia Mansfield Park.

Eu estou chegando em algum lugar com isso. Eu não estou apenas falando sobre o quão legal eu acho que Jeremy Bentham é. Então aqui vamos nos. Aqui chegamos ao ponto deste pequeno discurso.

Tratar tudo o que você sabe sobre o mundo como suspeito e tentar raciocinar a partir dele a partir de um conjunto tão pequeno de suposições quanto possível é, a meu ver, uma das ferramentas fundamentais do pensamento analítico. Nem todo mundo concorda comigo sobre isso. Há uma vertente particularmente irritante do pensamento “pós-turno-culturalista” que se eleva sempre que tento dizer isso em público. “O que é isso? Você está tentando inferir fatos fundamentados objetivamente sobre o universo? Bem, você não pode, ingênua salsicha idiota, porque, quer você goste ou não, você está em uma cultura, e essa cultura permeia toda a sua concepção da realidade, e você nunca pode realmente saber de nada”. Então a pessoa se senta, como um gato que é excessivamente convencido sobre o que acabou de deixar cair na caixa de areia.

Eu não sou * totalmente * antipático a essa ideia. Somos produto da cultura em que crescemos. Seria tolice pensar que, se eu crescesse na Saxônia do século XII ou no começo da China Imperial, teria as mesmas sensibilidades morais e políticas que tenho hoje. Eu provavelmente acreditaria no que a maioria das outras pessoas daqueles tempos e lugares acreditava. Isso dado, talvez não seja razoável achar que eu possa de alguma forma descartar os preconceitos da minha própria cultura.

Mas então eu olho para Jeremy Bentham, que, em um momento em que a moralidade da escravidão ainda era um assunto muito debatido, dizia que “está tudo bem ser gay e não deveríamos envergonhar as mulheres que gostam de sexo (no original, slut-shame). Coloque um álbum da Belle and Sebastian e um gif animado de um cachorro lutando contra o próprio reflexo, e ele poderia estar no Tumblr.

O método de Jeremy Bentham é meu método. Minha justificativa para o liberalismo progressista começa com as mesmas premissas que ele começou e então as joga para frente. É fenomenalmente mais fácil para mim fazer isso do que para Jeremy Bentham, porque tivemos 200 anos de progresso e estou cercado por outras pessoas que têm o mesmo conjunto de crenças que eu. Essas pessoas ficam muito satisfeitas em apoiar esse método quando serve para defender os direitos LGBT+ e a liberdade sexual, mas, se ele contrariar alguma ideia do lado esquerdo do espectro político, as espadas são levantadas.

Aqui está uma proposta radical: Jeremy Bentham não estava apenas à frente de seu tempo — ele estava à frente do * nosso * tempo. Isso era definitivamente verdade em 1967, quando a homossexualidade foi finalmente descriminalizada no Reino Unido. Talvez daqui a cem anos todos nós estaremos levando nossos porcos para uma circunvalação anteprandial ao longo de uma fileira de cadáveres mumificados. Numa perspectiva menos brincalhona, vale lembrar que mais da metade de seus escritos nunca foram publicados. Sabe-se lá o que ele escreveu que nós achamos estranho hoje, mas que nossos bisnetos vão achar totalmente normal.

De modo geral, talvez seja o fato de que você não pode ser um visionário sem ser excêntrico. Mesmo entre pessoas progressistas, que dizem prestar muito cuidado com questões relacionadas a diversidade, há uma quantidade surpreendente de hostilidade aos estranhos nerds que re-derivam a ordem social a partir de seus primeiros princípios. Quando estamos julgando as pessoas por fazerem isso, talvez devêssemos nos lembrar de Jeremy Bentham. Talvez este método tenha mais valor do que pareça a primeira vista.


Fala pessoal, Alysson falando.

E aí, gostaram de conhecer as peculiaridades próprias do filósofo moral inglês Jeremy Bentham, pai do utilitarismo clássico?

Aliás, que estão achando dos áudio-textos e audiobooks que estou lançando aí pra vocês? Tá valendo a pena, estão conseguindo aproveitar ao máximo? Em que eu posso melhorar? Quero saber sinceramente o que vocês acham, então já sabem onde deixar seus comentários, críticas, elogios e sugestões.

Ah, é bom lembrar que produzir esse material de divulgação filosófica tem certos custos, então se você quiser me incentivar a continuar difundindo filosofia pelos quatro cantos da internet, considere me apadrinhar. Basta acessar padrim.com.br/alysson e financiar meu trabalho com o valor que melhor cabe em seu bolso!

Já pensou se cada amante da filosofia que acompanha meu trabalho me desse um real por mês, o que eu não poderia fazer em nome da divulgação filosófica no Brasil?

Enfim, vamos nos falando e mantendo essa relação intelectual bacana e recíproca, valeu?

Minhas redes sociais vocês encontram na descrição. Meu nome é Alysson Augusto e a gente se vê no próximo episódio, forte abraço!

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