Confusão
Descrição da foto: vários comprimidos dispostos em cima de uma mão aberta
Abro os olhos assustado com o grito que eu mesmo dei. Somente o silêncio me responde. Mais nada. Uma cama de casal. Em vez de uma pessoa, vejo um frasco deitado ao meu lado. Vários comprimidos espalhados pela cama em uma desordem quase que natural. Aos poucos, me recuperando do choque do despertar, percebo uma coisa — Não faço a mínima ideia de quem sou.
Sinto dores internas e intensas. Meu corpo queima. Olho para as minhas mãos, vermelhas como se o sangue estivesse querendo vazar através dos poros da pele. Estou certo de que isso não é possível. Tento tomar impulso para levantar, mas é inútil. É como se alguém tivesse despejado a cola mais forte do mundo sobre a minha cama, eu tivesse deitado logo em seguida e adormecido. Tento falar algo, mas os meus pensamentos são traduzidos na língua dos gemidos, como uma sinfonia de sofrimento.
Aparentemente, moro sozinho — Até porque, se alguém mora comigo não deve me amar, já que ninguém veio me acudir. Respiro profundamente, me acalmo e tento com todas as minhas forças, mais um impulso. Sem sucesso. Sinto vontade de chorar e não tenho forças para resistir. Simplesmente deixo que as lágrimas escorram por minhas bochechas e pulem para o meu travesseiro. Percebi que impulsos não vão adiantar. CALMA; CONCENTRAÇÃO; FOCO. Olho para a direita e a poucos centímetros de mim, vejo a resposta: O telefone.
Descrição da imagem: Um telefone antigo em contraste com o fundo preto. A imagem está com um filtro preto e branco
É óbvio! Tenho que fazer uma ligação para a Polícia, Bombeiros ou qualquer outra entidade que possa me ajudar. Arrasto o meu braço até que a minha mão alcance a cômoda à minha direita e a puxo para que o telefone sem fio caia ao meu lado. Com muito esforço, consigo colocá-lo perto de minha orelha e discar o primeiro número que me veio à cabeça. Um (respiração profunda), nove (sinto uma dor forte no indicador e disco o último número com o médio), zero. Ocupado.
Parece que estou participando de um programa com pegadinhas de humor negro que as pessoas assistem para verem as outras sofrendo, enquanto estão sentadas em suas poltronas sujas, comendo de maneira porca e rindo como pervertidas que são. Não consigo encontrar outra explicação para um número de telefone de emergência estar ocupado.
Tento mais três vezes. Sem sucesso. Empurro o telefone para longe de mim e tento pensar em outra coisa, quando vejo um pedaço de papel do meu lado esquerdo, sobre a cama e perto do frasco de remédio. Me estico e entorto meu corpo para o lado até conseguir pegar o que parece ser um bilhete escrito com letra de pressa. Coloco-o em uma posição que facilita a leitura e começo:
"Não importa quem esteja lendo isso, só importa que saiba o porquê de minha decisão. Se você me conhece sabe que me culpei pela morte de Ana. Todos diziam que foi um acidente e que pegar no sono enquanto dirigia não foi minha culpa. Apesar de mentirem bem, todos transpareciam o ódio. O ódio por eu ter matado a filha, a irmã ou a prima deles, mas ela era a minha esposa, caralho! A porra de um caminhão, meu Deus! um caminhão! Como eu não morri? Por que eu não morri?
Agora não tenho ninguém. Definitivamente ninguém. Meus pais morreram em um acidente quando eu tinha 12 anos, e eu sobrevivi. Carreguei este peso até os 30, quando conheci a mulher mais linda do mundo, o amor da minha vida, mas agora ela morreu também. Agora não quero mais ninguém perto de mim!
Nem família, nem amigos. Não quero matar mais ninguém, não quero sobreviver a mais um acidente e ver as pessoas que eu amo morrendo. Não sei como vou me matar, mas eu vou. Tenho que fazer isso. Meu emprego como servidor público inútil não faz mais sentido e Jorge, meu único amigo, me deixou.
Se ainda existe alguém que me ama de verdade, o que eu duvido, saiba que não quero que chore por mim, não quero que chorem no meu enterro, pois a atitude que tomarei é repugnante e imperdoável.
João Carlos Maciel."
Depois de ler o que aparentemente é o meu bilhete de tentativa de suicídio, fico mais confuso do que emocionado. O nome João, assim como Ana e Jorge, não dizem nada. Nenhum lapso. O sentimento mais forte no momento é a raiva que tenho de mim mesmo por ter me entupido de remédios para me matar e conseguido somente uma sessão de tortura para o João sem memória.
Decido aceitar o desfuncionamento do meu corpo e me limito a olhar para o teto branco como a minha mente. Me identifico com o teto e compartilho um sorriso com ele. Ele não me sorri de volta, mas não esperava reciprocidade. É mais um desabafo mesmo, pra extravasar as emoções da última hora ou minuto — Só depois de me acalmar, percebi que há um relógio de ponteiro na parede que marca oito horas da manhã (o que deduzo pelos raios de luz que invadem o quarto) em ponto.
Um estalo. Meu corpo inteiro começa a formigar e ficar extremamente gelado. Não sei como reagir e, num ato de desespero, rolo para a direita, bato com a cabeça na quina da cômoda vermelha e caio de costas no chão. Outro estalo. O formigamento cessa e é substituído por uma dor aguda do lado direito da cabeça. Pra mim já chega!
Me apoio com os braços e me forço a ficar sentado com o auxílio da lateral da cama. Parece que a dor que estou sentindo na cabeça é tão forte que chama atenção e se sobressai na disputa de dores. Olho para o chão e percebo uma coisa: um fio de linha solto. É do telefone. Deve ter se soltado quando eu puxei a cômoda. O conecto novamente e pego o aparelho.
Antes de discar o número nove depois do um, penso melhor. Com exceção da cachola, o restante do corpo parece se recuperar incrivelmente bem depois de ter me jogado. Tem outra: quando perceberem que eu tomei um bocado de remédios, vão me obrigar a passar por acompanhamento psicológico e não estou preparado para isso. Largo o aparelho no chão e começo a pensar em nada. Não consigo pensar muito sem memória.
Me olhar no espelho pode ajudar a lembrar (penso). Definitivamente ainda não consigo andar. Tenho a opção de dormir até me recuperar completamente, mas o vazio na minha cabeça que ainda dói é muito barulhento. Decido então rastejar até o banheiro, que por sinal, não faço ideia de onde seja. Há duas portas: uma à minha direita, ao lado da cômoda do telefone; e outra à minha esquerda, mais distante. Ambas estão fechadas.
Escolho a primeira, torcendo para que seja a correta. Estico meu braço e, com as pontas dos dedos, puxo a maçaneta para baixo e uso o peso do meu corpo para abri-la. Caio de costas e bato a cabeça no piso, que começa a doer um pouco mais do que o nível insuportável. A luz acesa no quarto invade o segundo cômodo que ficará na minha nova e vazia memória. Encaro novamente o teto branco, meu novo amigo, mas dessa vez ele tem algo de diferente: marcas escuras, de tom esverdeado, que revelam que provavelmente eu não sou muito cuidadoso e deixei o mofo tomar conta do que deduzo ser o banheiro por causa do forte cheiro do que estranhamente consegui identificar como o de sabonete molhado.
Me esforço novamente para alcançar a maçaneta e deslizar pelo chão gelado e dou uma boa olhada ao redor. Um vaso sanitário marrom com a tampa abaixada; um balcão vermelho com tampo de granito e um espelho colado na parede acima dele; uma banheira branca. O espelho parece um desafio impossível, por enquanto, mas a banheira pode ser uma boa ideia, pois o suor escorre por todo o meu corpo e faz com que eu me sinta imundo.
Entro com o apoio do vaso sem me preocupar de ainda estar vestido, abro os registros de água quente e fria até que ela deixe quase todo o meu corpo submerso, com exceção da cabeça. Encosto a nuca na borda da banheira e olho para o meu corpo que mal consigo mover, mas algo impede que eu foque nisso: O reflexo do meu rosto.
muito bom o post
Downvoting a post can decrease pending rewards and make it less visible. Common reasons:
Submit
Obrigado, meu caro!
Downvoting a post can decrease pending rewards and make it less visible. Common reasons:
Submit
https://steemit.com/pt/@croniquista/os-sete-corpos-capitulo-1-confusao
Decidi postar o capítulo inteiro de uma vez. Fica mais fácil de acompanhar!
Downvoting a post can decrease pending rewards and make it less visible. Common reasons:
Submit
Ótimo conto! Fico no aguardo dos próximos capítulos!
Downvoting a post can decrease pending rewards and make it less visible. Common reasons:
Submit
Opa. Está postado, amigo!
Downvoting a post can decrease pending rewards and make it less visible. Common reasons:
Submit
Parabéns, seu post foi votado e compartilhado pelo projeto Brazilian Power, cuja meta é incentivar a criação de mais conteúdo de qualidade, conectando a comunidade brasileira e melhorando as recompensas no Steemit. Obrigado!
Downvoting a post can decrease pending rewards and make it less visible. Common reasons:
Submit