Quando a piada perde a graça

O humor não é uma ciência nem uma técnica, mas fundamentalmente uma arte. É verdade que em toda arte existe um pouco de técnica, e em toda técnica existe um pouco de arte. Mas no caso do humor ela é fundamentalmente a arte de fazer rir. Tanto é uma arte que às vezes a mesma piada, contada por pessoas diferentes desperta risadas diferentes. Quem não tem aquele amigo que basta abrir a boca para fazer todo mundo rir? Então mais até do que arte, é um dom, onde poucos são os felizardos que o possui e o exerce com excelência.

O humor na verdade é uma válvula de escape. Uma extravasada de sentimentos reprimidos que estavam apenas esperando o momento certo para “estourar”. E todo sentimento reprimido sempre estoura na forma ou de choro ou de riso, um dos dois. E nós preferimos que seja via riso, pois isso nos faz “sair por cima”, é quase como uma vingança.

Mas nem tudo são só sorrisos e gargalhadas: o humor também tem o seu lado negro. Dizem que o cômico e o trágico andam de mãos dadas. E realmente isso parece ser verdade, porque a gente sempre ri de alguma desgraça. Ninguém ri de um casal lindo, rico e feliz, com filhos saudáveis fazendo piquenique nos jardins de seu Palácio. Mas ri do desdentado tentando morder uma maçã.

O humor, exatamente por mexer com as desgraças da vida, tem um lado subjetivo. Uma linha tênue que separa o humor do mal gosto, o humor da agressão, do desprezo por alguém, do preconceito, do ferino, do maldoso.

E esse problema só ficou mais evidente recentemente com a democratização da internet. Porque antigamente os humoristas ou eram profissionais, que só chegavam ao profissionalismo após uma “peneira” que naturalmente eliminava os humoristas de mal gosto, ou então era aquele humorista de roda de bar, que podia até ter mal gosto, mas ficava naquilo mesmo, naquela rodinha e não ganhava maiores dimensões nem repercussões.

Mas esse não pode ser o único fator causador dessa polêmica recente com o humor. Porque piada que antigamente se fazia e se aceitava até profissionalmente, hoje é considerada de mal gosto. Pegue como um exemplo clássico disso o quadro Os Trapalhões. Quantos quadros deles hoje em dia são considerados machistas, racistas, homofóbicos, preconceituosos? Vários. Então realmente o assunto está em voga, e vale a pena discutirmos ele.

E falar desse tema no Brasil é impossível sem citar o caso clássico que foi o de Rafinha Bastos. Os casos mais emblemáticos dele foi quando ele disse que “estuprar mulher feia é favor”, ou que “comeria até o bebê dela”, se referindo à cantora Vanessa Camargo que estava grávida.

Eu vou dar os meus tostões. Eu penso que sim, se deve evitar piadas de mau gosto. Pronto, disse. E vou tentar me justificar.

Basicamente “o meu direito termina quando o direito do outro começa” (acredito muito nessa frase). Então se sua “simples piada” está provocando preconceito desnecessariamente, melhor evitar. Mas aí vem outra questão: como saber o que provoca e o que não provoca preconceito? O que é preconceito para um pode não ser para o outro. Há uma dose de subjetividade considerável nesse julgamento. Sem falar que tem aqueles que simplesmente dizem que isso não passa de censura prévia. Que cada um deveria dizer o que quiser e quem se sentir ofendido que busque as vias judiciais.

Nesse caso até piada nazista teria que ser permitida. Soa muito mal isso, não me parece ser o correto ou razoável. Afinal, palavras têm poder, e dizem que toda piada tem um fundo de verdade. Então como pode alguém achar graça de uma piada nazista? Realmente não consigo conceber, a não ser imaginando que deve ter algo de nazista nessas pessoas que riem disso. A gente só ri daquilo que reconhecemos existir um pouco dentro de nós mesmos. Se aquilo não nos pertence de forma alguma, sentimos o efeito contrário do riso, sentimos aversão, nojo, repugnância.

Por isso que dizem até que o humor tem o dom de evidenciar os preconceitos ocultos e reprimidos, e que o riso é simplesmente a explosão de um sentimento reprimido que não estava podendo aflorar. Então aflora tudo de uma vez só descarregado em 220 volts na forma de uma bela gargalhada. Os nossos gostos e desgostos ficam escancarados no humor. Ou você ri, ou você se espanta, não tem meio termo.

E esse mesmo raciocínio pode ser estendido para os demais preconceitos:

• só ri de piada racista quem tem um pouco de racismo dentro de si;
• só ri de piada machista quem tem um pouco de machismo dentro de si;
• só ri de piada homofóbica quem tem um pouco de homofobia dentro de si;
• e por aí vai...

Então meus amigos, a conclusão que cheguei é:

Em vez de fazer piada com o negro, porque não fazer com o racista?

Em vez de fazer piada com a mulher, porque não fazer com o machista?

Em vez de fazer piada com o gay, porque não fazer com o homofóbico?

Assim estaremos rindo dos preconceituosos e não dos que sofrem o preconceito. Estaremos rindo dos algozes e não das suas vítimas.

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