Marionete de Corpos e Dor

in pt •  6 years ago  (edited)




Ele sempre ficava ali na dele, no seu canto, mas isso não impediu que ele ganhasse aquele apelido.

Alguém usou a imaginação e o viu no cenário de cabeça para baixo. Notou que ele parecia um gatilho.



Então, ele, que sempre ficava no seu canto, passou a ser zoado todo dia. Era o gatilho, o curvinha, o tortinho, o do canto. Falavam, riam e debocham dele como se fosse só uma coisinha.

Até que um dia alguém teve a ideia de brincar de endireitar Gatilho.

Juntaram uns três, e tentaram endireitá-lo junto à parede.

Ele tentou se desvencilhar, dar chutes e socos, mas isso só ajudou a palhaçada ficar ainda mais engraçada.

No fim, muitos riam, outros olhavam indiferentes, e ele sentia-se muito mal.

A partir daquele dia, passou a ficar longe de todos, pois sempre que podiam já iam para cima dele: “Vamos endireitar o gatilho!”, “Vamos puxar o gatilho!”, “Hora de puxar o gatilho!”, "Dedo no Gatilho!"

Um dia, depois de muito sofrer com aquilo, ele decidiu partir.

Chegou, então, a outro lugar, e no início foi tudo tranquilo. As experiências passadas o faziam tentar ser sempre legal e não provocar ninguém. Nem mesmo os mais fracos e pequenos.

Mas logo alguém olhou para ele, e o viu num cenário um pouco girado.



Alguém o viu fininho e fazendo uma curva. Parecia um mijinho. Foi assim que surgiu aquele outro apelido.

Depois disso, a zoação começou de novo. Tudo era motivo para as piadas, trocadilhos e zoação. Mijo, mijinho, mijão, urina…

E até seu melhor amigo se afastou dele por causa do apelido que começara a ganhar: pinico, o amigo do mijinho.



Então, depois de muito sofrimento, ele partiu.

Virou um andarilho desta vez.

Não ficava mais em nenhum canto. Mas isso não o ajudou. Logo - num dos poucos locais que ainda frequentava - alguém olhou para ele e o viu num cenário girado e invertido.



E um novo apelido surgiu: Gancho.

Assim começou outra palhaçada. Jogavam coisas nele para “ver se ficavam penduradas”. Qualquer coisa mesmo. Era só ter a expectativa de ser engraçado ou inusitado, e já gritavam: “Joga no gancho!” E ele que se virasse para desviar.

Ele, então, voltou a ficar triste pelos cantos...


Mas, daquela vez, já era demais. Acabaria sendo ferido daquele jeito.

Transtornado, ele chegou até a fantasiar algo extremo...



Mas, depois, resolveu fugir da realidade e ir para longe de tudo.

Depois de muito caminhar, encontrou aquele lugar habitado por seres fantásticos. Um lugar onde foi bem recebido e tudo começou feliz e tranquilo novamente. Ali, ele sentia-se à vontade.

Enfim, sentia-se quase uma pessoa normal.

Até que um daqueles novos amigos viu algo ao olhar para ele. Ele, que ainda ficava na dele, no seu canto, sem mexer com ninguém.

A entidade, que se tornara amiga dele, viu o espaço entre o corpo dele e a parede, e sentiu vontade de criar algo naquele espaço. Então, ela fez a sua mágica, e deu asas para ele!

Assim, ele passou a fazer parte do mundo daqueles seres mágicos.

Ele agora tinha asas e podia voar. Ele agora era chamado de Anjo e, às vezes, até de Fênix. Ele agora era querido pelo grupo.

Mas, aos poucos, ele foi ficando diferente. Até que um dia passou a dormir de cabeça para baixo pendurado no teto. Tinha medo de estragar as asas se dormisse deitado, e também queria ficar menos curvado.



Ele tinha cada vez mais preocupações com as asas, saúde e aparência. Tornara-se solitário. Sofria com muitas dores devido às horas pendurado. Pouco voava durante o dia, pois tinha muito medo de estragar as asas, e achava que estava cada vez mais encurvado. Passou, então, a andar e voar somente à noite.


Ele sabia que todos já o achavam estranho. Ele mesmo pouco lembrava do que acontecia nas suas aventuras noturnas. Desconfiava que dormir de cabeça para baixo fazia mal para sua cabeça. Tinha medo de estar fazendo coisas terríveis naquelas noites.

Tinha pesadelos em que era a “A Besta Voadora”. Aquela que diziam que matava qualquer um que a chamasse pelo nome errado.

Nesses pesadelos, ele atacava lançando feixes de irritantes jatos fétidos sobre as suas vítimas, depois as enganchava e as deixava penduradas. Até que gritava para elas “Meu nome é Gamigan!”. E, então, era a hora de puxar gatilho.



Mas, mesmo esses comportamentos tão extremos nos pesadelos pareciam inócuos. Ele, ainda, era o ser que ficava pelos cantos e nada afetava.

Ele, então, passou a ter devaneios em que os seus pesadelos tornavam-se realidade. Ele sentia, no seu próprio corpo, o puxar dos gatilhos que disparavam projéteis, feixes de jatos fétidos-irritantes e ganchos pontiagudos como arpões. Atacava subjugando todos e, por um momento, tinha uma marionete feita de corpos e dor sob seu controle. Tinha uma marionete digna dos seus pesadelos. Até ser clivado de balas pelas autoridades.

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