Este artigo contém spoilers.
Em 1966, durante um espetáculo adjacente aos Jogos Olímpicos de Atlanta, um segurança chamado Richard Jewell descobriu uma mochila cujos explosivos no interior viriam a fazer uma vítima mortal e mais de uma centena de feridos. Prontamente, alertou as autoridades e foi preponderante nas manobras que ajudaram a salvar a maioria das pessoas que se encontravam no local. Não fossem as ações de Jewell, que levaram à rápida evacuação da área em questão, e o número de vítimas teria sido muito maior.
Inicialmente, foi saudado como um herói nacional, um homem corajoso que agiu corretamente e com sentido de dever. Participou em várias entrevistas e até foi convidado para escrever um livro. Todavia, essa imagem positiva foi obliterada quando o jornal Atlanta Journal-Constitution, numa peça escrita pela jornalista Kathy Scruggs, revelou que o mesmo estaria a ser investigado pelo FBI como autor ou cúmplice do atentado terrorista. O artigo faz ainda algumas associações e comparações que podem ser consideradas irresponsáveis.
Apesar da sua relativa imprudência, que ainda hoje serve de exemplo nas aulas de jornalismo, e da hecatombe que provocou na reputação e rotina diária de Jewell, o artigo original oferecia efetivamente a verdade: devido a encaixar no perfil de “bombista solitário” e ter tido alguns problemas no passado, o homem estava a ser investigado pelo FBI, procedimento que até é considerado padrão, visto que, nestas situações, quem descobre a bomba é sempre escrutinado. O azar de Jewell foi o seu estilo de vida e personalidade, acrescentando-se os relatos de alguns colegas, se encaixarem nas características do típico indivíduo que tende a cometer crimes do género, segundo o FBI. Por exemplo, em 1984, algo semelhante aconteceu nos Jogos Olímpicos de verão, vindo a descobrir-se mais tarde que o herói que desarmou a bomba, um agente do Departamento Policial de Los Angeles, foi também o seu construtor.
A situação de Jewell complicou-se devido à forma histérica e irresponsável como os jornais nacionais ampliaram o artigo do jornal de Atlanta, gerando-se um circo mediático à volta deste herói transformado em presumível vilão. Durante dias a fio, os repórteres não saíram das imediações da casa pertencente à mãe do suspeito, com a qual este vivia. Os títulos cruéis iam-se amontoando e a especulação nos canais noticiosos, via comentadores e especialistas por encomenda, atingia níveis tóxicos. No seu programa, o comediante Jay Leno chegou a comparar o segurança a Shawn Eckardt, um assassino que andava em voga. Antes de ser julgado ou de sequer surgirem provas concretas, foi criada uma imagem de culpabilidade à volta do homem que, ainda por cima, não soube lidar com o assunto da melhor forma, revelando-se presa fácil para algumas táticas extremamente duvidosas por parte dos investigadores.
Eventualmente, após várias visitas ao domicílio e interrogatórios, a investigação foi encerrada, tendo o governo emitido uma carta em que cimentava a inocência de Jewell. Este não demorou muito até processar várias entidades, como a Universidade de Piedmount, o The New York Post, NBC, CNN e, claro, a Cox Enterprises, a empresa-mãe do Atlanta Journal-Constitution. O último processo levou mais de uma década a ser concluído, pois foi englobado na legislação que viria a definir que um jornalista não pode ser obrigado a revelar as suas fontes. Em 2011, quatro anos depois da morte de Jewell devido a complicações relacionadas com a diabetes, o Supremo Tribunal da Georgia ilibou o jornal local, ficando assente que a autora da peça que ganhou tração internacional, Kathy Scruggs, agiu de boa-fé, pois as afirmações vigentes no artigo eram substancialmente verdadeiras. A jornalista também faleceu antes do veredicto, aos 42 anos, vítima de uma overdose de morfina, associada a problemas nas artérias. Os seus colegas de redação dizem que esta entrou em depressão após a polémica relacionada com o seu artigo e nunca conseguiu recuperar psicologicamente do sucedido, refugiando-se em várias substâncias nocivas.
‘Richard Jewell’, realizado por Clint Eastwood e escrito por Billy Ray, conta esta história de uma forma coerente e organizada. O problema: o filme mostra Scruggs, encarnada por Olivia Wilde, a trocar a dita informação crucial por sexo, em conluio com um agente do FBI fictício, interpretado por Jon Hamm. Para mais, é associada uma imagem de maldade à jornalista, principalmente quando esta faz a dita troca de favores, uma profissional sem escrúpulos e ética. No filme, esta festeja o surgimento do seu artigo nos canais nacionais e trata os seus colegas com um ligeiro desdém. Se bem que seja criado um pequeno arco de redenção para a personagem, em que esta percebe os efeitos do teu artigo na vida pessoal de Jewell, o estrago à sua reputação é evidente.
Ora, não existe nenhum registo público de que Scruggs tenha obtido a dita informação de forma ilícita, muito menos em troca de sexo. Aliás, não existe nenhuma informação que indique que esta alguma vez tenha cometido um erro grave ao exercer a sua profissão e, segundo os seus ex-colegas, esta nunca faria algo tão condenável como o que é mostrado no filme. Em várias ocasiões, estes descrevem-na como descontraída, rebelde e asneirenta. Também referem que tinha o hábito de vestir minissaias e saltos altos — sem dúvida que Clint Eastwood usou esse pormenor a favor da sua narrativa. Mais importante, ambas as fontes nas quais o filme se baseia, um artigo de 1997 da Vanity Fair da autoria de Marie Brenner e o livro ‘The Suspect’ de 2019 escrito por Kent Alexander, referem que Scruggs provavelmente obteve a informação sobre a investigação a Jewell, interpretado por Paul Walter Hauser, devido a uma relação de partilha com as autoridades locais cultivada ao longo de anos a acompanhar casos criminais e a conviver com agentes da autoridade nas horas vagas. Que se tenha saltado da informação de que a jornalista gostava de vestir saias justas e blusas com decote, e conviver com agentes da polícia, para a elação de que esta tinha relações sexuais com fontes em troca de informação é uma extrapolação deveras ofensiva.
Em declarações à Vanity Fair, o autor Robert Coram, que baseou uma das personagens do livro 'Atlanta Heat' na jornalista, e que acompanhou as reuniões animadas entre polícias e esta em bares e cafés como fruto da sua pesquisa, refere que "todos os polícias a respeitavam e brincavam imenso com ela". "Eu nunca ouvi nenhum deles, até quando estavam a beber, a dizer algo negativo sobre ela, pessoalmente ou profissionalmente", acrescentou.
Em suma, o realizador e o guionista de ‘Richard Jewell’ construíram uma manta de perversidade à volta da figura do jornalista, criando, no processo, o principal antagonista da sua narrativa: os media, personificados por Kathy Scruggs, que já cá não está para se defender. Devido a isto, o jornal de Atlanta enviou uma carta à Warner Bros, a Eastwood e a Billy Ray a exigir que o filme exibisse um aviso onde estivesse patente que vários dos elementos são ficcionais e destinados a causar impacto dramático, sob pena de partirem para ações judiciais nos vários países onde o filme fosse lançado. O aviso, que é bastante genérico, aparece no fim dos créditos, altura em que a larga maioria dos espectadores certamente já abandonou a sala.
Desertando-se a teoria ingénua de que tudo isto poderá ter sido um erro inocente, Clint Eastwood usa o poder dramático da sua obra, a história comovente e relevante de um herói improvável, para denegrir o jornalismo como um todo, numa altura em que, em muitos setores da sociedade, a animosidade face aos profissionais da informação é grande. É também conveniente que Jewell se enquadre na conceção que existe do corriqueiro sulista caucasiano, amante de armas, patriota que, direta ou indiretamente, poderá ser associado à fatia populacional que, teoricamente, terá tendência a adotar a invenção de Eastwood como lema político.
Recorde-se que o cineasta é um apoiante do Partido Republicano — num comício em 2012, fez um discurso em que fala para uma cadeira vazia onde, supostamente, estaria o presidente Barack Obama — e já defendeu, por várias vezes, as ações de Donald Trump, uma figura que se queixa constantemente da forma como é tratado pelos mesmos media abordados em ‘Richard Jewell’. Apraz dizer que todas as verificações de factos executadas por organizações com uma reputação a manter concluem que Trump é um mentiroso compulsivo. Por exemplo, em abril de 2019, o The Guardian sublinhou que Trump chegou às 10 mil afirmações falsas desde que se tornou presidente. A contagem atual já vai em mais de 14 mil.
Mais uma vez, atirando-se a ingenuidade pela janela fora, parece que ‘Richard Jewell’, um filme bastante competente a nível técnico e dramático, foi idealizado de forma a avançar as ideologias e preconceitos do seu criador, a favor de uma agenda familiar a quem ande atento: os jornalistas são maldosos e devem ser tratados como um inimigo. Que outro motivo plausível haverá que justifique a grosseira adulteração das atividades de Kathy Scruggs na realidade? A criação de um bode expiatório? O apimentar da narrativa? O mais caricato é que o filme, eventualmente, funcionaria tão bem, ou melhor, se a personagem de Wilde tivesse obtido a informação através de uma interação considerada normal entre jornalista e respetiva fonte. Porquê introduzir uma ocorrência impossível de verificar, ou seja, uma mentira ou invenção, num filme cuja intenção é alertar para as consequências nefastas da especulação em massa?
Ademais, é avançado o estereótipo sexista, e bastante antigo, de que as jornalistas do sexo feminino, e, por arrasto, as mulheres em geral, recorrem a avanços sexuais para alcançarem os seus objetivos.
Existe ainda hipótese de se estar perante um exercício distorcido e mal calculado em que existe uma tentativa de ilustrar o outro lado da moeda, ou seja, de os jornalistas provarem o próprio veneno ao verem um dos seus colegas ser denegrido em público à custa de suposições. Contudo, se for esse o caso, os fins não justificam os meios.
Num projeto cinematográfico que se compromete em partir em defesa de um injustiçado, pode ler-se “The true story of Richard Jewell” no poster oficial, não deixa de ser irónico que a relação com a fidedignidade funcione num só sentido, qual máquina de propaganda para a qual os factos ou a informação disponível são moldáveis de acordo com os objetivos adotados. Isto gera inevitavelmente uma reflexão sobre a função da cultura nos tempos que correm. Tal como outros veículos de conteúdo audiovisual, o Cinema pode servir para alertar para certas problemáticas, para repor a verdade e usar o apelo das massas para se fazer justiça a indivíduos e instituições, mas também pode ser usado de uma forma daninha, parcial e partidária.
Como se costuma dizer, Clint Eastwood deu uma no cravo e outra na ferradura, fez a Kathy Scruggs o que o mundo fez a Richard Jewell. A contradição não podia ser mais evidente.