Disciplina hospitalar
Enfermeira: Uma nova paciente, Professor.
Professor: Histeria! Quem admitiu esta paciente?
S. Freud: Fui eu, Professor.
Professor: Ignora a minha regra em relação à admissão dos chamados histéricos, no meu departamento?
Paciente: Eu estou cega, Professor! Não consigo mexer as pernas!
S. Freud: Eu conheço as regras… mas esta mulher está doente, Professor. Gostaria de fazer alguns exames, com a sua permissão.
Professor: Exames?! Vamos levar a cabo esses exames aqui e agora, sr. Freud! Cavalheiros, aproveito a ocasião para vos revelar a verdadeira natureza da histeria.
Paciente: (Grunhidos)
Professor: Silêncio! Esta mulher diz sofrer de paralisia da perna esquerda. Numa paralisia real, a perna não estaria tão rígida. Cavalheiros, a nossa paralitica está a fazer uma exibição mais adequada ao teatro popular do que à permanência na minha ala. Os seus sintomas foram deliberadamente assumidos com o propósito de atrair atenção, causar pena, e escapar das responsabilidades da vida!
In “Freud”. John Huston, 1962.
No século XVII, o afastamento que se veio a acentuar entre a(s) Igreja(s) e o Estado, na questão hospitalar culminou na transição do poder religioso para o poder secular, numa nova gestão dos doentes, dos médicos, das enfermeiras e restante pessoal, e da própria arquitectura dos hospitais. A reforma começou no meio militar, e alastrou-se depois ao civil, reorganizando-se em procedimentos e regulamentos dentro do mesmo, na tentativa de combater toda uma série de comportamentos indesejáveis numa nova sociedade que se procurava construir (Foucault, 1979: 103).
Nos hospitais marítimos, o tráfico de bens era frequente e normalmente realizado por indivíduos que se faziam passar por doentes, para conseguirem aceder ao hospital, transportando consigo as mercadorias que, sem passarem pelo controlo da alfândega, prosseguiriam posteriormente o seu ilícito destino (Foucault, 179: 103). Para além desta questão do controlo do tráfico, havia ainda a necessidade de curar efectivamente os soldados doentes e feridos, evitar contágios e epidemias, e ainda o problema indesejável da deserção. Neste mesmo período, a linha de pensamento mercantilista começava a considerar a população como a verdadeira fonte de riqueza de uma nação, e por isso deveria ser quantificada e controlada no sentido de maximizar o seu potencial de produção, quer na guerra, quer na vida civil (Foucault, 1979: 198). Surgiram assim as estimativas demográficas, as taxas de natalidade e mortalidade, as pirâmides demográficas, no sentido de se medir a rentabilidade económica de determinadas populações (Foucault, 1979: 198). No campo civil ou militar, eram investidos tempo e recursos na formação das pessoas, quer nas técnicas militares, quer no ensino escolar, por exemplo, e esse investimento deveria ser rentabilizado (Foucault, 1979: 104). Na procura pela maximização da produtividade de cada indivíduo, no combate ao desperdício, instalou-se a disciplina, como Foucault (1979: 105) a invoca: uma técnica de poder e controlo que permite gerir as pessoas, controlando as suas multiplicidades, e utilizando ao máximo a sua força de trabalho.
Associado a essa nova perspectiva capitalista sobre a população, surgiu uma nova moral, a ética do trabalho, que entrava em conflito com “qualquer” estilo de vida que não dependesse do trabalho assalariado (Forty, 1980: 67). Os indivíduos deveriam ter a capacidade de sobreviver com a remuneração do seu trabalho, dispensando os donativos caritativos ou a criminalidade. Assim, o hospital tornou-se palco de uma acção disciplinar, de uma (re)educação, não só dos pobres e dos doentes, mas, até certo limite, de toda a população. A própria admissão de pobres doentes, passava por um processo de triagem que, entre outras funções, procurava identificar os falsos doentes, e remeter estes últimos para casas de trabalho, e por sua vez, os pobres considerados verdadeiramente doentes, assistidos no hospital, alimentados no hospital, seriam medicados sob a vigilância do pessoal médico, e educados na nova disciplina da rentabilização económica do indivíduo. Os hospitais continuaram assim, a operar também como “centros de acolhimento” para os pobres doentes, excluídos do espaço público, mas integrando-os num processo de cura e de reeducação baseado nos princípios capitalistas e mercantilistas que se desejavam para uma nova sociedade (Forty, 1980: 69)
Na procura pelo arquétipo da nova estrutura hospitalar, no final do século XVII, realizaram-se na Europa “viagens-inquérito”, ou seja, “uma série de visitas e observações sistemáticas e comparadas” a hospitais, no sentido de definir um programa de reforma para os mesmos (Foucault, 1979: 99). Considerou-se importante perceber as dinâmicas dos hospitais existentes na época, e da relação dessas com as estruturas arquitectónicas dos mesmos, não pela sua estética, mas pela sua funcionalidade (Foucault, 1979: 100). Como era organizado o espaço, e quais os procedimentos que possibilitariam a cura de um maior número de doentes? Pela observação minuciosa da distribuição e dos trajectos dos doentes e das coisas, foram criadas “relações entre os fenómenos patológicos e os espaciais” (Foucault, 1979: 100), entre a arquitectura, os comportamentos, e os resultados terapêuticos em determinados hospitais, comparativamente a outros. Eram os resultados médicos a definirem a melhor estrutura e organização hospitalares. E assim se pôde avançar para a construção de uma nova arquitectura com função terapêutica, entre outras.
Os hospitais de voluntariado do século XVIII começaram a ser construídos nos arredores das cidades, por se considerar que o risco de poluição atmosférica era menor, e por ser mais fácil de conseguir a extensão de terreno necessário para a construção de tais edifícios (Forty, 1980: 69), pois desta forma os doentes eram afastados do centro da cidade. No entanto, na maioria dos casos, estes hospitais começavam por ocupar casas privadas, de habitação, cuja organização interior era adaptada às necessidades, e só posteriormente, se os fundos o permitissem, procederiam à construção de um novo edifício, com uma arquitectura mais adequada (Forty, 1980: 69).
A estética característica destes novos hospitais passava pela ausência de decoração, interior ou exterior, o que lhe concedia um aspecto pouco apelativo, austero, e institucional, semelhante a uma prisão ou um local de punição, que por si só operaria como instrumento moralizante, pelo sentimento de aversão ao mesmo, e assim dissuadir os menos necessitados (Forty, 1980: 72). Na organização do espaço interior, o corredor era decisivo, pois representava no espaço, a organização hierárquica dos utilizadores (Forty, 1980: 70). Desde a sala onde eram recebidos os pobres e doentes, para posterior triagem, até ao gabinete do governador hospitalar, o corredor desenhava um trajecto, de acessibilidade cada vez mais restrita, que permitia, não só a representação espacial dos níveis de autoridade, como também uma maior supervisão daqueles que nele transitavam (Forty, 1980: 70). As próprias alas eram concebidas de modo a possibilitar a vigilância de três delas, simultaneamente, controlando a entrada e sobretudo a saída não autorizada de doentes (Forty, 1980: 70).
Medicina, Arquitectura e Poder: do hospital "conventual" medieval à moderna medicina hospitalar (pt. 1)
Bibliografia:
Conc. Trid., S. XIV in Paulo VI, Papa. “Unção e pastoral dos doentes”. www.liturgia.pt/rituais/Enfermos.pdf (acedido a 27/01/2012).
Forty, Adrian, 1980. “The modern hospital in England and France: the social and medical uses of architecture” in King, A. (Ed.), Building and Society, Londres, Routledge, pp:61-93.
Latour, Bruno, 1987. “Science in action”: Centres of calculation. Open University Press, England, pp: 215-258.
Foucault, Michel, 1979. Microfísica do poder. Organizaçao e tradução de Roberto Machado. Edições Graal, Rio de Janeiro.
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