Há muita discussão sobre o período que Hollywood vive que pode ser resumida na seguinte pergunta: afinal, há ou não uma crise de criatividade em Hollywood?
Acho que a pergunta não é apenas válida, como é também interessante. Afinal a crescente quantidade de reboots, adaptações, continuações e derivados que chegam aos cinemas do mundo todo sugere que, no mínimo, há um padrão em curso. Há uma exploração de “marcas” como um caminho preguiçoso para o lucro.
Foi com essa perspectiva que fui assistir mais um filme inspirado numa obra existente: Suspiria – A Dança do Medo.
A. Dança. Do. Medo.
…
Após sair do cinema, percebi que esse novo Suspiria é um novo e importante capítulo nessa discussão. Por quê? Bem, vamos lá!
Suspiria narra a história de Susie Bannon (Dakota Johnson, que inicia o papel bastante próxima de seu papel principal, Anastasia Steel, da trilogia 50 Tons de Cinza, mas evolui ao longo da narrativa apresentando uma maturidade cênica até então inédita), uma inocente e ambiciosa bailarina americana que se muda para Berlim Ocidental, em 1977, para tentar fazer parte da prestigiada Markos Tanz Company, sob a orientação de Madame Blanc (Tilda Swinton, fenomenal como sempre). Há também o psicoterapeuta dr. Klemperer (Lutz Ebersdorf*)que, assim como Susie, descobrirá uma realidade ainda mais sombria do que aquela que eles vivem.
O diretor Luca Gadagnino – indicado ao Oscar pelo belíssimo Me Chame Pelo Seu Nome – e o roteirista David Kajganich – cujo trabalho eu conheci apenas recentemente com a ótima série The Terror –deixam bem claro desde a primeira sequência que esse Suspiria não possui a menor intenção de copiar ou continuar o original de Dario Argento. Ou seja, ele não é um reboot ou uma continuação, mas algo inteiramente novo.
No Suspiria de Argento, o clímax do filme (apenas no terceiro ato) é a revelação de que a escola de balé é, na verdade, um coven de bruxas. Nesse novo Suspiria, Guadagnino e Kajganich dão essa informação logo nos minutos iniciais. Ou seja, de cara já podemos perceber a distância entre as obras.
Para reforçar esse distanciamento, Guadagnino utiliza vasto vocabulário cinematográfico com precisão. As cores, por exemplo, reforçam prontamente essa ideia. Em praticamente todos os momentos do filme, a fotografia de Sayombhu Mukdeeprom adota uma tonalidade lavada, quase anêmica. O design de produção de Inbal Weinberg e a direção de arte de Merlin Ortner enfatizam essa impressão debilitada com ambientes internos e externos de cores pastéis e desgastados pelo tempo. Nem mesmo cores mais fortes, como, por exemplo, o vermelho, que é uma cor quente e afirmativa, possuem brilho. No filme ele é denso, pesado. Escuro como em grandes quantidades de sangue.
Essas escolhas não visam apenas estabelecer a distância entre as obras, mas também buscam refletir o período no qual a história acontece. Suspiria retrata a Berlim dividida, desolada pelo pós-guerra e em plena guerra fria. E também acometida por terrorismo, num subtexto que busca amplificar a mensagem da obra – falarei disso mais adiante. São escolhas estéticas que emulam a desolação do período e a percepção social coletiva do povo que vive nas ruínas de um país destruído física e moralmente. Toda descrença que permeia a sociedade ganha representação nas escolhas estético-narrativas da obra.
Outro elemento que fortalece tamanha angústia é a trilha sonora composta por Thom Yorke, o vocalista e compositor do Radiohead, que utiliza a qualidade de suas composições para dar densidade à atmosfera de Suspiria. A música alterna funções, sempre mantendo melancolia atmosférica e hipnótica em cada nota. A trilha serve também como um vislumbre nos anseios e personalidade da protagonista Susie. Medo, desilusão, sonhos, desejos, tudo harmonicamente ilustrado na sonoridade taciturna de Yorke.
A música se modifica com a narrativa e alterna entre valsa, eletrônico, clássica e corais sombrios e lamuriosos, quase como lamentos, sempre enfatizando a tônica dos momentos, incluindo até o uso de sintetizadores para criar gritos horripilantes. E se a música de Suspiria evoca sensações diversas, na ausência dela, no silêncio, é onde o terror melhor se sugere.
Guadagnino dá início à construção do horror sugestivo e atmosférico ao vermos a jovem Patricia (Chloë Grace Moretz) observando assustada uma manifestação nas ruas da cidade. O surgimento da personagem acontece in media res, ou seja, no meio da ação. Dessa forma, o roteiro e a direção já sugerem teor onírico à narrativa. Como um pesadelo que é elaborado, principalmente, através da montagem de Walter Fasano, que utiliza cortes rápidos e ângulos variados dos mesmos objetos para demonstrar a inquietação de mental Patricia. É uma sensação de estranheza tão presente que me capturou rapidamente, inquietando e instigando minha atenção. Closes em fotos e livros, somados aos sussurros que preenchem silêncios eliminam a dúvida acerca do sobrenatural da obra. Há uma presença constante ao redor dos personagens centrais. Mas isso fica realmente palpável com a forma como Guadagnino movimenta a câmera.
Na introdução, por exemplo, vemos Susie numa estação de metrô de Berlim. O zoom trêmulo e afoito que Guadagnino dá na personagem pontua presença de algo. E não só sugestiva, mas capaz até de derrubar o mapa das mãos dela. Mas antes mesmo disso, Guadagnino já havia estabelecido essa presença, de forma menos óbvia, ao utilizar diferentes planos como a fumaça que separa Patricia dos manifestantes (o susto dela não parece tanto pela manifestação, mas como se algo surgisse somente para ela), ou, principalmente, os tristes e solitários corredores do consultório e apartamento dr. Klemperer. O plano pode passar desapercebido, mas se você reparar verá uma mínima movimentação da câmera em direção à porta, como algo se aproximando calmamente.
Essas movimentações mantém a presença como um elemento constante e, por vezes, nos colocando para observar àquelas pessoas através da sua perspectiva. Essa visão subjetiva funciona muito bem como elemento determinante no suspense da obra, aliás. Ao não sabermos mais sobre essa presença, há uma dúvida constante que inquieta.
Mas o terror e o suspense não são apenas sugestivos. Guadagnino e o departamento de maquiagem utilizam o horror gráfico sem qualquer piedade (a primeira sequência do balé me fez contorcer na cadeira). Quando opta pelo terror visual, Suspiria não esconde nada e consegue se chafurdar em sangue e vísceras, tal como noutro balé catarticamente macabro e expurgante. E nesses momentos a montagem torna a estabelecer um ritmo errático, alocando informações simbólicas tão grotescas quanto assustadoras noutra elaboração que mantém a tônica de pesadelo da obra.
Diante isso tudo, vejo Suspiria como mais um ótimo exemplo de como o cinema de terror está numa boa fase. Mas sempre é bom reiterar: não é terror de jump scares, daqueles preguiçosos que buscam apenas o susto reativo ocasionado por um barulho infundado. Muito pelo contrário, há poucos sustos em Suspiria, mas são bons e até o som alto e repentino se justifica diegeticamente. Mas é pela atmosfera gradativamente densa que o terror demonstra-se muito assustador.
Mas depois de falar tanto sobre esses aspectos técnico-narrativos, você esteja se perguntando: mas isso tudo pra que? Qual a mensagem de Suspiria?
Suspiria é uma grande alegoria acerca da mulher. Ou seja, é, acima de tudo, uma obra feminista. E muito!
O elenco todo é feminino. Os únicos homens surgem e desaparecem de cena em poucos segundos. “Mas e o dr. Klemperer”, você poderia perguntar. Bem, reparou que há um asterisco no nome de Lutz Ebersdorf. Não é difícil notar, mas na verdade quem interpreta Klemperer é Tilda Swinton (que ainda assume um terceiro papel no filme, a mãe Markos). Há muito mistério sobre qual seria o significado disso, mas ao refletir bem sobre a questão é possível notar como essa decisão reforça a ideia da valoração da perspectiva feminina da obra, impedindo que haja qualquer viés masculino sobre aquelas mulheres, nem mesmo nessa instância tão incomum.
Mas não se trata “meramente” do enaltecimento da mulher, mas de uma abordagem profunda e complexa sobre o feminismo. Se numa primeira camada os diálogos indicam temas fundamentais como o descobrimento sexual e a autonomia da mulher sobre o próprio corpo, no desenvolvimento da narrativa a importância da sororidade e a responsabilidade da manutenção da mesma tornam o discurso ainda mais profundo. É como o renascimento do feminismo, que precisa manter-se renovado. Mas não se trata de uma glorificação utópica dessa ideologia, mas um retrato de como a sociedade é capaz de corromper qualquer coisa, inclusive àquelas fundamentais à existência. E o reflexo dessa corrupção é duro, violento e desesperador.
Para ajudar na elaboração de tamanha ideia, Suspiria destaca o Dr. Klemperer, que funciona como uma testemunha – vítima é melhor – de tudo. O simbolismo do doutor é fascinante por si só. Através dele eu fui remetido à outra obra que trata sobre bruxas: Häxan – A Feitiçaria Através dos Tempos, documentário dramatizado mudo sueco-dinamarquês de 1922, escrito e dirigido por Benjamin Christensen (que também interpreta o diabo no filme), baseado parcialmente no estudo do Malleus Maleficarum, um guia alemão do século XV para inquisidores. Häxan comentasobre como a superstição e a incompreensão de doenças e doença mental poderiam levar para a histeria das caças às bruxas.
Em determinado momento, uma das bruxas condena o doutor ao afirmar que ele, enquanto médico, diagnosticou mulheres como histéricas numa forma de diminuí-las ou agredi-las. Logo, por uma perspectiva até válida (no quarto ato, Häxan ironiza que os diagnósticos médicos – que suprimiram as superstições da idade moderna – que internavam mulheres “histéricas” em manicômios desumanos serviam como mero substituído das soluções medievais, tais como a queima na fogueira), ele é um vilão. Mas aos descobrirmos o passado de Klemperer, percebemos que ele se trata de um homem bom. Sua esposa, capturada pelo nazismo e morta num campo de concentração, amou-o até o último segundo da sua vida. Um homem que foi, na verdade, vítima do seu tempo. E também vítima de interesses inconsequentes e mesquinhos.
A jornada de Klemperer e de Susie significam a descoberta de algo maior. E essa descoberta, esse vislumbre sobre aquilo que realmente importa, implica em um renascimento. É preciso reconhecer, mas deixar o passado para trás para que, com essa nova perspectiva, o novo nasça das dores e horrores do mundo. Ainda que haja muita sujeira a ser limpa (metafórica e literalmente), o futuro oriundo dessa perspectiva é positivo, tal como reflete o epílogo de cores mornas, em tons oníricos de aurora. O despertar de um pesadelo e um novo sonho, agora aconchegante. Na parede, marcas do passado que permanece na história, mas abriga novas possibilidades. E pra isso, o simbolismo do ‘A’, de Anke (Jessica Harper, a protagonista do Suspiria de Argento), a esposa do doutor, no coração talhado na parede, acima do ‘J’, de Joseph Klemperer, sugere a elevação da mulher como o novo necessário – seu lado da parede simboliza esse novo, ao contrário do ‘J’ de um lado desgastado pelo tempo.
Mas por que, afinal, eu comecei o texto falando sobre a suposta crise criativa de Hollywood? Num primeiro momento, tive medo de que essa nova versão de Suspiria fosse apenas um caminho preguiçoso para o lucro, o que fortaleceria a opinião da crise criativa de Hollywood. Mas não. Felizmente, não. Embora, como qualquer outro filme, Suspira tambémprecise e almeje o lucro das franquias (o filme e a cena pós-créditos indicam isso), ele busca, antes de mais nada, oferecer algo genuinamente novo para o espectador. Um trabalho robusto e dedicado, cuja unidade elabora experiências sensórias fortes para refletir acerca da nossa realidade. Tudo isso com um esmero digno de aplausos e, mais importante, de revisitas!
Suspiria não é um remake, continuação ou spin-off de um clássico. É, como disse Britt Hayes, do ScreenCrush, o renascimento de uma obra-prima.