Este mundo é de loucos.
Quando conduzia passou na rádio um daqueles programas sobre temas políticos da atualidade que de um segundo para o outro me deixam aflito para partilhar a urgência, para fazer alguma coisa. E no fim acabo sempre por me sentir impotente, porque não posso fazer nada. No melhor dos casos posso chegar a casa, descarregar o carro à pressa e recolher-me no abrigo do teclado, o único lugar onde sei como agir.
Hoje é o dia em que grande parte do mundo relembra o Holocausto, as suas vítimas e se admira uma vez mais como foi possível que pessoas fizessem aquilo umas às outras, como foi possível que aproximadamente 6 milhões de seres humanos fossem extreminados. Já um milhão é um número que nos escapa. Mas seis – e em tão pouco tempo, com tanta eficácia!
Uma das razões pelas quais é importante relembrar o que aconteceu, é para evitar que volte a acontecer. Para evitar que seja possível que o mundo testemunhe, calado, como milhões e milhões são assassinados ou morrem de fome, sede, exaustão, frio, doença.
A rádio emitiu um programa sobre este dia em que relembramos esse outro, o 27 de janeiro de 1945, em que as forças militares russas chegaram a Ausschwitz-Birkenau e libertaram os prisioneiros do campo de concentração.
Após essa emissão seguiram-se alguns temas políticos da atualidade. Entre outros, a situação desesperante no Iémen, onde há guerra, o acesso a água potável é reduzido, as pessoas morrem de epidemias e fome, e uma situação cujos números me deixaram abismado.
Segundo o World Food Program 18 milhões estão numa "situação alimentar instável" (18 million people are food insecure). Cerca de 8 milhões estão numa situação muito precária, completamente dependente de ajuda humanitária e, sendo essa insuficiente, essas 8 milhões de pessoas nunca sabem onde arranjarão a próxima refeição e podem muito bem ver-se à beira de morrer à fome ou por desidratação. Cerca de um milhão (se me compreendi bem os dados mencionados na emissão da rádio) contraíu cólera.
Portanto (se não estou em erro) uns 9 milhões de pessoas – um número quase equivalente à população de Portugal inteiro - encontra-se à beira da tragédia.
Acho que isto me deixa tão abismado por duas razões: acima de tudo porque é impossível sequer compreender o grau de sofrimento total que isso implica, segundo porque me apanhou desprevinido (terceiro porque gostava de poder fazer algo mas não sei o quê).
E é aqui que acho que os meios de comunicação estão a falhar uma vez mais. E a fugir às suas responsabilidades.
É irónico viver numa era em que os media parecem mais preocupados em partilhar um tweet do Donald Trump, que se esbanja em disparates e termos como as "fake news", quando podiam estar a alertar o mundo para crises como as do Iémen. Porque isso está a acontecer agora. Neste momento pessoas estão a ser vítimas de sofrimento e atrocidades a uma escala inimaginável.
A incompetência dos media vê-se nisso mesmo – pois perguntem a vós próprios – sabem mais sobre as manias do Trump e a sua vida pessoal ou sobre a situação no Iémen (ou na Síria, ou no Mali, ou na Somália, ou na Líbia)?
Admito que sou mal-informado e que me podia informar melhor. Certamente que encontraria informação se procurasse com empenho. Mas a responsabilidade dos Media existe, independentemente da minha como cidadão.
Não estou a reivindicar notícias esporádicas (com a de hoje) que vem confrontar-nos com números chocantes. Estou a falar de jornalismo sério a informar, a explicar, a localizar. Ainda agora tive de ir ver ao mapa onde fica o Iémen!
Nada sei sobre essa guerra – é quem contra quem? Xiitas contra sunitas? Contra o estado? Contra os sáuditas? Há quanto tempo? Porque razão?
Explicar a sério, nunca o fazem – não esclarecem a situação com continuidade. Não o fizeram com a Líbia, nem o Afganistão, nem o Iraque, nem a Síria, nem a Ucrânia, nem o Mali, nem a Somália, nem o Iémen. É tudo esporádico, impulsivo, para agitar o espírito. É tudo número de mortos e de bombardeamentos e quantos soldados enviamos para lá. Como na crise na Ucrânia, quando nos levaram à beira de acreditar numa eminente Terceira Guerra Mundial entre a Rússia e a Nato, para pouco depois recairem no silêncio como se o conflito se tivesse evaporado.
Informar, explicar, localizar, contextualizar – para que o jornalismo e a atualidade possam exercer pressão sobre a política.
Essa mesma política que nos prejudica a todos. Essa política – como por exemplo a alemã: a vender armamento há anos e anos a países como a Arábia Sáudita e a outros países envolvidos em conflitos militares (só há poucos dias emitiu uma proíbição). A mesma política feita por políticos que sublinham a cada oportunidade a dívida eterna da Alemanha por ter sido responsável pelo genocídio do Terceiro Reich, mas que não vê qualquer contradição em fornecer partidos agressores com armamamento.
Em parte a mesma política que depois participa em fechar as portas da Europa aos refugiados, que suborna uma semi-ditadura turca (que neste preciso momento usa tanques leopardo alemães para demolir os curdos) para ficar com os "problemas" que a indústria do armamento ajudou a criar.
Vejam bem que só nos primeiros quatro meses de 2017 – digamos que ainda em plena crise de refugiados e clima de instabilidade e guerra em África e no Médio Oriente – o governo alemão deu a sua concessão para a venda de armamento no valor de 2,42 mil milhões! E a Arábia Sáudita é dos melhores clientes. Porque a política o permite.
Forçamos as pessoas a fugir aos tanques que vendemos e quando tentam a todo o custo procurar segurança e futuro, talvez nas nossas margens, destruímos-lhes os barcos? Erguemos cercas e dizemos que são o inimigo?
Gostava de terminar com uma sugestão, um apelo, mas de momento, com toda esta indignação não dá.
Logo falamos, quando daqui a uns tempos os media acordarem e nos alarmarem para uma nova vaga de refugiados que surge "do nada".
Logo falamos, quando as pessoas voltarem a encontrar amparo em ideias nacionalistas e racistas. Ideias como as que encaramos hoje, no Dia Internacional de Lembrança do Holocausto, nos parecem impossíveis de aceitar. Ideias como as que levaram ao genocídio de 6 milhões de pessoas.
Quem sabe até pode chegar bem cedinho – pode ser que não se forme uma grande coligação e haja novas eleições e a fatia da Afd se torne ainda maior.