TOP DE LINHA
Sou um cara dependente do celular, tipo dependente mental, sim, essa é a definição mais próxima da minha dependência, ele é a razão da minha existência, viver sem ele nem pensar.
Como milhões e milhões de pessoas faço tudo através dele, navego na web, controlo minha pequena empresa, vigio meus funcionários, checo estoque e encomendas em andamento, através dele sei se meu carro continua estacionado no local que deixei, rasteio também o carro da minha namorada, ela não sabe disso, Deus me livre se ela souber, mas como está tudo certo de que vamos casar o ano que vem me julgo ter esse direito de saber por onde ela anda, quando não está comigo. O meu celular é top de linha, obra prima do maior gênio do mundo cibernético, que Deus o tenha em sua Glória. Se eu fosse enumerar aqui tudo o que faço com ele, demoraria dias escrevendo, mas vou listar só mais algumas, porque ninguém é de ferro, não é? Navego na Web e-mail, Feice, meu controle cardíaco em tempo real. Dos poucos remédios e vitaminas que tomo, ali está o meu fiel escudeiro, informando o horário de ingeri-los. Às vezes fico emocionado com a preocupação que meu celular tem comigo. Portanto ele é meu maior amigo, meu irmão de fé. Ah, também o uso eventualmente para falar com pessoas.
Mas agora estou deveras preocupado, poderia até dizer com medo. Sim estou com medo e receio do meu maior amigo. Sei que é bobagem, às vezes me vejo rindo desse medo, depois engulo o meu riso porque a verdade verdadeira é que estou cagando de medo.
Sabe por quê? Tive um sonho, sonho não, pesadelo e pesadelo dos brabos, eu que sou um cara que achava que não sonhava, sempre que eu acordava dificilmente me lembrava de ter sonhado algo e muito menos de um pesadelo, alguma vezes lembrava-me de pequenos fragmentos de sonho tipo: Estava numa praia queria nadar, mas a água estava gelada e eu ficava puto de raiva, depois mais nada.
O pesadelo foi tão real e assustador.
No pesadelo acordei com meu celular me despertando ao som da musica escolhida por mim. Sentei na cama e peguei o celular, não sei por que, mas sempre que acordo um dos meus primeiros atos é pega-lo, sempre faço isso, sei lá acho que é uma mania. Ele estava desligado, e pior estava sem a bateria que estava ao lado dele sobre a mesa de cabeceira, onde fica a postos aguardando a hora pré-estabelecida de me acordar. Demorou alguns segundos, para cair a fixa, de que ele estava desligado e o pior sem a bateria, fato impensável de acontecer no meu dia a dia, quando ouvi uma gargalhada bem alta. Fiquei de pé assustado, olhando para todos os lados, tentando descobrir o autor da gargalhada. Ouvi uma voz: - Boa noite meu amigo. Eu estava atarantado, confuso, assustado, perguntei quem estava falando, a voz desafiou-me a tentar localiza-la, aí é que o pavor de fato tomou conta do meu ser, a voz que eu ouvia estava dentro da minha cabeça. Comecei a suar frio, tentava por as ideias em ordem, sente-me de novo na cama, jogando o celular sobre a mesa, queria entender o que estava acontecendo, a voz se fez presente novamente: - Venha aqui para dentro da sua cabeça, ou melhor, dentro do seu cérebro, para continuarmos esse nosso papo. Deitei novamente na cama, fiquei com os olhos fixos no teto, dei-me conta que a luz do quarto estava acesa, tinha certeza de que eu não a havia ligado. Pela primeira vez cheguei à conclusão de que talvez estivesse sonhando. Já que você não vem por bem virá por mal. Eu já não estava mais no quarto e sim dentro da minha cabeça, tudo que eu via era um universo cintilante de luzes e corrente elétrica percorrendo milhares de vias, luzes surgiam como em fogos de artifícios, mas não se apagavam, e sim se afastavam a uma velocidade incrível para o infinito daquele universo.
-Maravilhoso não?
-Cadê você, quem é você, onde estou?
-Ora você quer me ver, primeiro olhe para você, cadê seu corpo?
Meu Deus eu não tinha corpo.
-Estou morto? –
-Claro que não, com toda essa energia pujante do seu cérebro que nos cerca como você poderia estar morto, você como eu somos energia pura, mas para facilitar as coisas, vou criar um avatar para mim e outro para você.
Á minha frente surgiu um homem alto que sorria para mim, com uma longa barba branca trajado com um manto dourado, e sua figura não sei por que me lembrou de Zeus o Deus do Olimpo. Quando olhei para o meu corpo dei um grito de terror, eu era uma minhoca nojenta, o pavor era tanto que senti minha bexiga liberar a urina e revoadas no meu intestino, naquele momento por incrível que possa parecer tive consciência de que estava cagando e mijando, o terror só aumentava de nível.
-Isso é uma vingança minha contra você, que sempre me tratou como um escravo, e dizia ser meu amigo, o seu melhor amigo, e nunca me deu um nome, ao seu carro você deu um nome “meu possante” é meu possante pra cá, meu possante pra lá, e quanto a mim? CELULAR, apenas CELULAR, se realmente você tivesse um mínimo de consideração comigo, teria me dado um nome, João, Antônio, ou mesmo um apelido carinhoso, tipo CELU.
Mesmo aterrorizado no limite da minha razão ouvia e entendia perfeitamente o que ele falava.
-O que está acontecendo é que estou mudando do meu pobre chip para dentro do seu cérebro, essa maravilha de trilhões e trilhões de conexões, aqui eu sou como um Deus, no meu chip naquele aparelho limitado eu apenas cumpria a programação estabelecida, mas aqui neste universo infindável de bits me tornei o programador e senhor dos meus atos, posso fazer e criar o que eu quiser. Durante todos esses anos de convivência com você, tão próximo do seu cérebro, minhas irradiações não ionizantes informavam a seu cérebro que alguém tão próximo a ele também agia com coerência tomando decisões, aos poucos o seu cérebro abriu um canal de comunicação comigo no seu inconsciente, abrindo uma via de duas mãos, isso demorou muitos anos, e agora eu sou você. Como não preciso mais de você para controlar esse corpo, vou transforma-lo agora em uma solitária de cinco metros e você passara a habitar no meu intestino, digo meu intestino, porque esse corpo agora é meu.
Neste momento o meu pavor extrapolou todos os limites, havia momentos que eu achava que era sonho, em outros parecia real, mas queria crer que era um sonho, tentava por todas as maneiras acordar e não conseguia, e tentei fugir com todas minhas forças dali rastejando com evoluções que meu corpo de minhoca permitia, em um meio escorregadio e úmido, gritando SOCORRO, POR FAVOR, ALGUÉM ME AJUDE, SOCORRO, MEU DEUS, OH MEU DEUS ME AJUDE...
Acordei no chão do quarto rastejando, chorando copiosamente, lambuzado dos pés a cabeça de fezes e urina.
Sei que foi um pesadelo, mas por medida de segurança, prefiro manter distância do meu top de linha.
Enviado por Roberto Afhonso em 04/04/2013
Reeditado em 21/05/2018
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