No atual momento político de fervorosa polarização ideológica, fomentada a partir dos acontecimentos ocorridos na esfera governamental nos últimos anos, muito se fala e se discute a respeito de rótulos como esquerda e direita. As torcidas políticas organizadas encontraram nesses bordões maneiras de fomentar suas identidades e promover calorosamente os conflitos que vão desde as ruas aos ambientes virtuais. Pouca atenção é dada, porém, ao conteúdo que é promovido por esses lados calorosos e como isso se reflete, de fato, na prática.
Em algum momento você, ao menos, já parou pra se perguntar o que diferencia aquele ferrenho eleitor do Bolsonaro de um fiél eleitor do Lula? Acaso já se perguntou se existe de fato uma diferença tão explícita entre essas figuras tão presentes nos ambientes do debate público? Vou mais longe: em algum momento já parou para reparar na tamanha semelhança existente entre eles?
Em uma pesquisa do datafolha um fenômeno que foi apelidado de voto “Lulanaro” ou “Bolsolula” retrata bastante a possibilidade de existência de um elo entre esses grupos políticos vistos como tão distintos. Na pesquisa, realizada por volta do mês de Outubro de 2017, 6% dos eleitores de Lula, que aparece liderando com 36%, votariam em Bolsonaro em um cenário em que Lula não estivesse presente. Do outro lado, 13% dos que votariam em Bolsonaro (sem Lula na disputa) votariam no ex presidente em outros cenários possíveis. É realmente difícil compreender os números, mas há uma explicação!
O filósofo e escritor Jean-Pierre Faye’s em seu livro Le Siècle des idéologies (O Século das ideologias) nos apresenta uma teoria que pode esclarecer bastante a respeito desse fenômeno. A Teoria da Ferradura, como é chamada, busca trazer uma nova perspectiva a respeito da maneira de se lidar com os espectros políticos. Contrapondo uma noção linear, onde cada vez mais para um lado, mais distante estará do outro, a teoria consiste na ideia de que os lados se dividiriam como uma ferradura. Como consequência, quanto mais para a ponta de um lado se avança, mais próximo se está do outro.
O ponto de conexão entre esses extremos acaba se manifestando em características comportamentais que igualam tais disposições políticas, fazendo com que a diferença entre elas sejam, em alguns momentos, até mesmo mínimas. É o que pode ser visto, por exemplo, ao se analisar parte da história do caótico século XX, o dito século das ideologias.
O fenômeno do totalitarismo que surge no século XX é provavelmente a mais explícita manifestação da semelhança existente entre os extremos: de um lado temos o socialismo soviético, do outro o fascismo e o nazismo (e esses são apenas os exemplos principais). Tais ideologias representam nada mais do que duas faces da mesma moeda, que mesmo pertencentes a espectros distintos, acabam se aproximando em diversos aspectos e características: como no alto grau de anti liberalismo, autoritarismo, idolatria a figuras políticas messiânicas, entre outros.
Em nosso cotidiano não é raro enxergar, em diversos contextos, a manifestação dessa semelhança entre os grupos que representam extremos opostos de ideologias distintas. Abaixo elenco quatro casos variados que podem servir de exemplo prático para compreendermos a questão:
1 - feministas protestam contra cartaz de filme
No ano de 2016 foi lançado o filme X-men: Apocalypse, estrelado pela queridinha de Hollywood, Jennifer Lawrence. Em um outdoor de divulgação, o vilão Apocalypse, vivido por Oscar Isaac, aparece estrangulando a personagem de Jennifer Lawrence, a conhecida Mística. Até então, nada de novo ou anormal, apenas um vilão agredindo um dos mocinhos da trama em um filme repleto de conflito e ação. Não para as feministas!
Embaladas pela declaração da atriz Rose McGowan, feministas do mundo todo passaram a criticar o cartaz e a imagem escolhida para a divulgação. “Não há contexto na propaganda, apenas uma mulher sendo estrangulada. Sem esta contextualização, a imagem se torna ofensiva e, honestamente, estúpida”, disse Rose em entrevista para o The Hollywood Reporter.
Não se tratava mais de um vilão agredindo um dos protagonistas, mas de uma expressão da violência contra a mulher. A repercussão foi grande e a própria Fox, responsável pelo filme, chegou a recuar e retirar os cartazes de circulação: “No nosso entusiasmo para mostrar a vilania do Apocalipse, sequer reconhecemos naquele momento a conotação perturbadora desta imagem durante o processo de impressão. Uma vez que percebemos como essa imagem pode ser insensível, nós rapidamente tomamos as medidas necessárias para remover esses materiais. Pedimos desculpas por nossas ações. Nunca iríamos perdoar a violência contra as mulheres”, retratou a Fox.
2 - grupos de direita protestam contra exposição queer
A exposição “queermuseu - cartografias da diferença na arte brasileira”, exibida no Santander cultural, em Porto Alegre, foi um dos casos de maior repercussão, relacionados a discussão sobre a relação da política com a arte, em âmbito nacional, no ano de 2017. A exposição que reunia cerca de 270 trabalhos de 85 artistas com obras voltadas à questão da diversidade, foi interrompida no dia 10 de Setembro, bem antes de sua data oficial de encerramento, que seria no dia 8 de outubro.
Motivados por grupos organizados e manifestações de ativistas ditos conservadores pela internet, a repercussão do caso foi grande no debate público brasileiro e a ideia de que a exposição trazia consigo obras ofensivas à fé e à moral, pelo fato de haver trabalhos com conotação sexual e religiosa, fez criar uma narrativa de combate que não mais via na exposição a simples expressão artística, mas uma apologia à pedofilia, à zoofilia, à imoralidade sexual e afins.
Com isso, veio também uma narrativa de justificativa para a censura. Em meio as pressões, o banco Santander recuou e se retratou: “Ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana”, declarou o banco em nota.
3 - cineastas de esquerda boicotam filmes de “direita”
Outro caso emblemático ocorrido no mesmo ano, foi o boicote organizado por sete cineastas no festival de cinema de Pernambuco, o Cine PE. O festival tinha em sua lista de exibição os filmes “O Jardim das Aflições”, de Josias Teófilo, que retrata parte da vida e da obra do filósofo Olavo de Carvalho, e “Real - O Plano Por Trás da História”, de Rodrigo Bittencourt, que busca retratar de forma dramatizada a maneira como foi organizado e esquematizado o Plano Real.
Diante disso, sete cineastas que também exibiriam seus próprios trabalhos no festival se sentiram ofendidos pela presença de filmes que supostamente representariam o alinhamento com uma visão política distinta daquilo que eles acreditam. Para os cineastas, exibir os filmes era apoiar uma visão de mundo alinhada ao “golpe de Estado”, supostamente ocorrido no ano de 2016. Em nota publicada, eles afirmam que a exibição de tais filmes “favorece um discurso partidário alinhado à direita conservadora e grupos que compactuaram e financiaram o golpe ao estado democrático de direito ocorrido no Brasil em 2016. Para nós, isso deixa claro o posicionamento desta edição, ao qual não queremos estar atrelados.” Alguns nomes responsáveis pelo ato: Savio Leite, Cíntia Domit Bittar, Eva Randolph, Leo Tabosa.
Após o caso, a edição do evento que ocorreria em Recife entre 23 a 29 de maio foi adiada por tempo indeterminado. Em nota a direção do festival buscou esclarecer o ocorrido e afirmou, “Jamais houve quaisquer formas de politização das programações”. Após o ocorrido, o festival incluiu outros filmes em sua grade e o evento foi realizado no mês seguinte, tendo Jardim das Aflições sido consagrado como melhor filme do Cine PE 2017.
4 - intelectual progressista é agredida em aeroporto
Judith Butler é uma filósofa pós-estruturalista norte americana, e tem como foco de seus trabalhos, o feminismo contemporâneo, a teoria queer e questões sobre Filosofia política e Ética. Judith esteve no Brasil entre 6 e 10 de novembro 2017. A filósofa veio ao país para participar do seminário internacional “Os Fins da Democracia”, realizado no Sesc Pompeia, em São Paulo.
Não demorou muito e o anúncio de sua vinda se tornou alvo de críticas e protestos. As coisas não pararam por aí: manifestantes contrários a vinda da intelectual chegararam a elaborar um abaixo assinado com uma petição para que a palestra da filósofa fosse cancelada e sua participação removida do evento da Sesc. O abaixo assinado ultrapassou a marca de 150 mil assinaturas.
Como se já não fosse o bastante, a oposição à vinda de Judith ao Brasil não se limitou a militância virtual. Além de manifestações em frente ao local do evento que reuniram tanto opositores da filósofa quanto apoiadores, o caso chegou no seu ápice quando no fim de sua viagem ao Brasil, Judith acabou sofrendo agressões verbais diretas e até mesmo agressão física. Segundo relatos de uma testemunha, uma manifestante teria chegado a empurrar Judith com um cartaz feito de madeira e cartolina. O caso teria ocorrido no dia 10 de novembro, no aeroporto de Congonhas, quando Judith se preparava para realizar o check-in.
Não são poucos os casos que envolvem tais tipos de comportamentos, e é fácil notar que a disposição para essas atitudes não são de exclusividade de um lado, mas acabam se manifestando em ambos os lados da guerra ideológica, demonstrando de maneira empírica que a extremidade é capaz de criar um elo de semelhança entre as posições políticas mais distintas possíveis.
Compreender esse caráter fraternal que existe entre os lados mais dogmáticos dos espectros políticos, nos faz conseguir entender tais fenômenos próximos do nosso cotidiano, e diversos outros comportamentos que podem ser encontrados no nosso contexto nacional e mundo afora, e que de maneira irônica - ou não tão irônica assim - acabam partindo de visões políticas que se pretendem opostas.
É preciso entender, entretanto, que compreender a natureza problemática das extremidades não é de forma alguma fazer um apelo à isenção, ou acusar a inexistência de possível coerência em correntes políticas distintas existentes no debate público. Compreender o perigo dos extremos é, apenas, elencar alguns princípios importantes para uma prática política saudável: princípios como a prudência, a tolerância e a razoabilidade.
Texto originalmente publicado no perfil pessoal do medium: https://medium.com/@victoroliver/quando-esquerda-%C3%A9-direita-e-vice-versa-dab107f69d61
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