Havia uma escola perto da minha casa onde embora eu não estudasse, eu tinha um vizinho e sua irmã que lá estudavam. Em um fim de semana, iria ter feira de cultura nessa escola, esse meu vizinho chamou eu e outros amigos para irmos lá, dizia ele que as colegas da irmã dele estariam lá na feira. Eu já há tempos estava de olho numa amiga da irmã dele que eu havia visto vir nadar na casa deles uma vez, chamarei-a aqui de Letícia. Naquela ocasião, não tive oportunidade de puxar conversa com a Letícia visto que era aniversário da irmã dele e ela não nos tinha convidado pois ainda não nos conheciamos bem já que eles eram vizinhos novos. Na feira da escola portanto seria a oportunidade ideal que eu teria de puxar um papo com aquela menina que eu havia visto antes.
Chegando lá fomos visitando vários estandes mas nada de vê-la, até que depois de um tempo encontramos a irmã do meu amigo, as amigas dela mas nada da Letícia aparecer. Passou alguns minutos e ela chega chamando as amigas com um ar de urgência:
- Pessoal, corre senão vocês irão perder! Está na hora da palestra do "Sem-Terra"!
Pronto, ali matei a charada de um assunto de que ela tinha preferência, as causas socialistas. Porém eu nunca fui realmente afeito à linha esquerdista, no máximo que eu simpatizava era pelo anarquismo de esquerda (ainda não conhecia outras linhas de anarquismo), ou seja, me preocupava (e me preocupa) os problemas sociais mas achava todo aquele bojo cultural da esquerda com sede de poder um saco, até mesmo meio broxante, visto que eles desprezavam filmes, livros e músicas que não seguissem a cartilha principalmente se viessem dos EUA ou Inglaterra. Naquela época era o boom de filmes como "Clube da Luta", "Matrix", "Amnésia" e pra quem era de esquerda filme bom era Almodóvar e afins. Livros como os de Philip K Dick, Neuromancer era coisa de "imperialista" bom mesmo pra eles eram livros brasileiros tipo "Os Ratos" de Dyonélio Machado. Música nem se fala, era Chico, Djavan e MPBs no geral, eu dizer que ouvia Metallica ou Prodigy (num máximo um RATM) era assinar o atestado de infantil perante aqueles intelectuais. Então, mesmo não sendo alguém da direita conservadora eu era culturamente bem diferente do padrão apresentado pela cartilha da esquerda.
Mas, voltando à feira de cultura, eu precisaria de alguma forma chamar a atenção da Letícia pois provavelmente depois da palestra do sem terra iríamos embora e talvez eu não tivesse outra chance. Meus vizinhos já viravam pra mim falando um "Ah, vamos embora" e eu insistia: "Não, vamos ao menos ver essa palestra!" aonde eles concordavam mas com a cara de falta de vontade.
Chegando lá, as cadeiras estavam em forma de roda, havia umas bandeiras do MST na parede e os alunos foram chegando e sentando assim como duas professoras. O Sem-Terra tb chegou, sentou na cadeira do meio. Eu fui fingindo enrolar derrubando umas cartolinas e pegando no chão e recolocando na mesa para ver aonde sentaria a Letícia. Assim que ela chegou e sentou, eu sentei ao lado sem parecer intencional visto que a maioria dos outros lugares já estavam ocupados. Ela, sem ainda olhar pra mim, pegou um caderno e uma caneta pra anotar o que ele falava, diferentemente das amigas que ficavam conversando. O Sem Terra começou a explicar sua história, suas causas, suas lutas e eu fingindo uma atenção que normalmente eu não daria numa situação parecida, tudo pra impressionar a garota. No final da palestra ela e algumas amigas fizeram perguntas clichês sobre os perrengues que ele passara. Terminado tudo ela foi guardando o caderno ainda sem ter sequer olhado algum momento pra mim. Vi que era a hora de puxar a conversa, virei pra ela e disse:
- Eu me sensabilizo muito com a luta dos Sem Terras. O presidente FHC é isso, isso e aquilo e deveria dar mais atenção a eles, fazer logo essa reforma agrária e distribuir as terras de maneira mais justas e blá, blá, blá, blá...
Daí ela fechou a mochila, levantou-se, olhou pra mim e disse:
- Pois eu na verdade acho esse assunto um saco, só estou aqui até essa hora por que preciso fazer perguntas e um resumo pra ganhar pontos, ainda bem que acabou.
E saiu.