Escreva-se a história do homem comum na era dos Descobrimentos (PT)

in hive-121219 •  5 hours ago  (edited)

O Estado Português da Índia durou quatrocentos e cinquenta e seis anos, entre Mil Quinhentos e Cinco e Mil Novecentos e Sessenta e Um. Para comparação, em termos modernos, Os Estados Unidos da América, ainda só têm pouco mais de duzentos anos de existência e terão de resistir outro tanto para atingir a amplitude temporal do período português nos territórios entre Ormuz e Malaca. Foi constituído através da nomeação de D. Francisco de Almeida como Vice-Rei da Índia, em Fevereiro desse ano, antes da sua partida para o Oriente, a vinte e cinco de Março. Rei D. Manuel I, o Venturoso, (filho de D. João II, o Príncipe Perfeito, de cujo reinado o contemporâneo Nicolau Maquiavel terá tirado, em parte, inspiração para o seu famoso livro), tinha subido ao trono dez anos antes e iniciado a estética do que nós chamamos hoje, o Estilo Manuelino, inserido no movimento mais global da Renascença Europeia, e que tinha por base motivos marítimos e como símbolo logotípico a esfera armilar, representante do domínio global atingido pela Coroa Portuguesa.


( Image: A techincal drawing of a late 16th century and early 17th century 500 tonne Portuguese galleon. Featured in the Portuguese ship-building treatise Livro de Traças de Carpintaria, or "Book of Draughts of Shipwrightry", compiled by the shipyard official Manuel Fernandes. 500 tonnes indicates the tonnage (cargo capacity) of the ship below the main deck, as per Portuguese regulations in the 16th and 17th century. )

É claro que a história da Índia Portuguesa começa séculos antes, com o final da conquista do território nacional de Portugal e a exigência da continuação da aplicação das tradições oriundas do feudalismo que mandavam que a Nobreza se distinguisse por feitos de armas e pela pressão religiosa da guerra santa contra o infiel muçulmano. O facto de Portugal se ter adiantado aos Reinos Católicos vizinhos na finalização dos objectivos territoriais Ibéricos que lhe foram permitidos, deu-lhe o tempo suficiente para se antecipar na aventura africana, que começou com a conquista das praças marroquinas e desaguou num plano intergeracional de exploração do mundo que acabou por formar a primeira aldeia global e, pela primeira vez na história conhecida, colocou em contacto povos de todos os continentes.

Também é evidente que, ao longo dos séculos, as cambiantes de factos políticos, económicos e sociais, bem como a variação das envolvências trouxeram muitos altos e baixos, muitas glórias e fracassos a esta presença global do mundo português e, como todos os poderes, por maiores que se tornem e mais extensão atinjam, também este acabou por desvanecer, todavia, ainda hoje vivemos os resultados, bons e maus, produzidos por essa aventura, que começa por ser uma conquista da vontade, passa por introduzir uma revolução científica, tecnológica e artística e atinge o clímax ao permitir e até certo ponto, induzir, a fusão de culturas distantes que ainda hoje se pode observar nos actos mais simples do dia-a-dia e nas palavras utilizadas em locais tão díspares como o Japão, toda a África, a América do Sul e Portugal.

Em Mil Quinhentos e Cinco, uma escassa meia dúzia de anos após a chegada da primeira Armada Poruguesa à Índia, que é um facto que apenas se poderá, talvez, comparar, em termos de investimento humano, financeiro, científico, tecnológico e industrial, à corrida espacial do final do Século XX, com igual ou ainda maior impacto cultural no conjunto da humanidade que esta última, porque a precedeu, e, consequentemente, a permitiu, os Portugueses estavam em competição com os Venezianos e os Turcos pelo domínio da riqueza que chegava à Europa através das Rotas da Seda e das Especiarias. E não havia nação mais improvável que Portugal para a invenção da projecção inter-continental de forças e para a obtenção de um domínio militar absoluto sobre inimigos vastamente mais ricos e numerosos.

A história deste período é feita de notáveis feitos científicos e tecnológicos, do desenvolvimento da Inteligência militar, de novas armas, tácticas e estratégias para as utilizar, e pelo despontar de um novo tipo de homem, produzido pelos estabelecimentos de ensino e investigação que então se formaram, (evidentemente, nesse tempo, tinham outros nomes, mas não deixaram de o ser). Já foi escrita muita história e todos esses quatrocentos e cinquenta e seis anos se encontram amplamente documentados em crónicas, diários de bordo da armada e da marinha mercante, assentos de baptismo, cartas pessoais e diplomáticas e tratados entre Estados que ainda existem e outros que pereceram na história, bem como nos monumentos, na arquitectura e nas culturas vivas de povos e comunidades que vão desde Timor a Moçambique, em torno de todo o Oceano Índico, que, nesses tempos, foi para o Reino de Portugal, o que o Mediterrâneo foi para o Império Romano.

A história, contudo, não é apenas feita de grandes movimentos nacionais. É criada, em todos os sentidos, pelas pequenas acções, por vezes, aparentemente insignificantes, de homens e mulheres. Pessoas reais, que existiram, como nós existimos, e nos precederam nesta coisa estranha que é viver cada dia sem saber o amanhã e ter que lutar todos os dias por um futuro melhor. Falta contar as histórias desses homens e dessas mulheres. Nesses quase cinco séculos, ocorreram factos não menos heróicos que a resistência de Leónidas em Esparta, nem menos românticos que a Guerra de Tróia, e, todavia, faltam os as novelas, os romances, as sagas e os contos que nos aproximem da dimensão humana, pequenina, por vezes mesquinha, mas mais próxima a cada um de nós, que o contar dessas histórias representaria.

Contem-se essas histórias e também talvez se mude alguma coisa no mundo, porque são as histórias dos pequenos personagens que as viveram que nos permitem, também a nós, sentir o pulsar das suas vidas e descobrir que, afinal, eram todos pessoas como nós, que viveram em circunstâncias diferentes e em sociedades com outras morais e outros valores. Talvez então o mundo moderno se livre desta compulsão anti-histórica de considerar tudo o que aconteceu nesse meio milénio da humanidade como o anátema que vem sendo criado por gente que, mais do que querer compreender o que os indivíduos de eras passadas, através do correr das suas vidas, trouxeram de melhor às nossas, o que pretendem é afastar-nos a todos, cada vez mais, uns dos outros, fazendo regressar as divisões que tantos desses homens e mulheres lutaram por eliminar.

@hefestus 25.02.25

P.S.: Chamo a atenção de e para, o meu amigo @marcoteixeira, divulgador da História das Ilhas Atlânticas.

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