Carta para minha mãe ou O pequeno tratado sobre ser seu filho

in hive-188619 •  4 years ago 

Daqui seis dias você vai fazer aniversário. Eu acho que poucas vezes escrevi um texto para você, mãe. Acredito que eu tenha escrito mais sobre mais pai do que sobre você, por que você me deu menos trabalho, hehe.

Eu hoje vejo os dias passando, os anos passando, como folhas voando ao vento com uma música do Philip Glass ao fundo, fecho os olhos e vejo flashbacks de toda a história que vivemos até chegar aqui, eu e você, hoje, morando juntos novamente, depois de tantas e tantas reviravoltas nessa trama da vida. Lembro de você brincando comigo na caixa de areia, lembro de você me fazendo uma barraca de acampamento no quintal com o varal de roupas e uma lona por cima, pisco os olhos e vejo você triste, perdida, pisco novamente e te vejo decidida a seguir outro caminho da vida, e decide se separar de meu pai, vejo você com um emprego, feliz por que podemos enfim ter nosso espaço e liberdade e você, livre, aproveita sua tardia juventude, eu cresço, dia após dias, vivencio o mundo, ambos vivenciamos, observamos, aprendemos. Eu me caso, você vai para Portugal, depois volta e vai embora novamente, agora para Joinville, buscando oportunidades, independência, liberdade, sempre. Eu me separo, visito você, a distância dá um sabor especial à saudade. É incrível como a relação de mãe e filho depende de um equilibrio gigantesco para ficarmos em harmonia, é assim para todos e para tudo, não é?
Eu começo a namorar novamente, depois caso, depois vou para o interior, morar em um sítio, um dia te ligo dizendo que minha esposa está grávida. A criação da vida segue seu fluxo, uma filha desejada, morando na natureza, parece até cena do filme "Árvore da vida", mas assim como no filme, por mais idílico e gracioso que sejam os pequenos flashes da memória, a vida não é fácil e nem feita só de doces peças. Saímos do sítio, voltamos para a cidade, a criação de uma criança não é fácil, observo minha esposa (agora ex) e penso em quão complicado é ser uma mãe, imaginei a minha própria, em sua juventude, lidando como podia com minha existência, com esse pequeno ser de alta demanda, pedindo e chorando. Minha vida ainda deu mais algumas voltas nessa jornada antes de o universo convergir nosso caminhar novamente, para nessa fase, enfim, voltarmos a viver no mesmo teto, reaprendendo o sistema de cada um e suas necessidades, seus espaços e ideias.
Eu hoje com 32 anos, te observo, com 30 anos a mais que eu, e uma grande bagagem de vida, histórias e mais histórias, um caminho que só você trilhou. Fico feliz de saber que estamos bem, que temos o que precisamos e uma vida saudável apesar dos pesares. Passei anos demais tentando compreender por que as coisas acontecem como acontecem. Eu espero daqui pra frente poder apenas vivenciar com lucidez e calma no olhar a experiência de vida que se descortina, reclamar menos pra você, exigir menos de você. É bastante clichê dizer que nossa vida é rápida e que seu tempo aqui na terra é menor daqui pra frente, um tanto assustador, no entanto. Mas parece que as relações do dia pós dia nos tornam tão fossilizados, enferrujados, para vivenciar a experiência real e visceral de estarmos aqui vivos e pulsantes, ao lado de quem amamos. Sei inclusive que seu amor incondicional por mim, seu filho é de fato incondicional, e sei disso por que tenho uma filha, e a vejo dia após dia crescendo e parece que isso torna meu espírito cada vez mais preenchido, mais intenso.
Eu queria poder dizer mais vezes que te amo, te dar mais carinho, quebrar essa espécie de barreira magnética mental que me distancia da natureza da sua importância para mim. Mas indiferente de eu conseguir isso ou não, essas linhas, uma espécie de carta não direcionada, tem como intuito, te desejar, minha mãe, mais muitos anos de vida saudável, plena e lúcida, nessa fase que é a de maior maturidade da nossa raça, a fase onde o corpo está perdendo a força, mas a alma está ganhando luz. Feliz Aniversário.

Foto de minha mãe, tirada num dia bonito de verão em que visitávamos o sítio de um amigo.

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¡Qué bella historia! Me vi reflejada en ella, como madre y como hija. Me quedo con esta frase: "... nessa fase que é a de maior maturidade da nossa raça, a fase onde o corpo está perdendo a força, mas a alma está ganhando luz..."

Muito obrigado por ler e comentar @gemamedina! Certamente é uma fase incrível de aprendizado, nosso corpo não tem mais o mesmo vigor, mas, talvez este freio natural ajude a mente a poder trabalhar mais o lado emocional e psicológico (e também espiritual). Abraço!

Parabéns para sua mãe. Muito bonita sua carta para ela

Obrigado :)