Primeiro dia de faculdade, bati o olho num rapazinho e já senti aquela afinidade. Não aquela de atração física, mas aquela de viajar nas mesmas idéias. Ficamos amigos rapidamente. Eu gostava muito de conversar com o Elivar. A gente gostava das mesmas músicas e até das mesmas partes das músicas. A gente ia nos mesmo bares, nos mesmos shows. Foram anos muito legais.
Mas tinha uma coisa que eu não gostava nele. Ele estava sempre se interrompendo; interrompendo os acontecimentos da sua vida, as amizades que fazia, os amores que vivia, os empregos que conseguia, os sonhos que construía... era como se no meio do caminho ele sempre perdesse a vontade, a força, o que o movia. Sabe aqueles brinquedos de corda que vão diminuindo os movimentos até parar de vez? O Elivar era assim na vida. Isso me irritava porque eu queria vê-lo ir para frente, seguir adiante nas coisas, sentir o gosto de viver alguma coisa até o fim. A verdade é que eu PERDI A PACIÊNCIA com ele. Lembro que a essa altura ele me emprestou uns cds, e pediu que eu ouvisse uma música, e uma parte específica dessa música. Lembro que ouvi, e pela primeira vez não gostei da mesma parte que ele.
Acabamos dando uma distanciada. Um tempo depois soube que ele havia abandonado a faculdade e voltado para a casa dos pais no interior. Eu tive certeza de que ele não estava bem, e achei que ele havia tomado a melhor decisão ao escolher ficar perto da família. Hoje eu tenho muito mais consciência sobre como essa experiência de sair da casa dos pais para fazer faculdade, e morar em sozinho em outra cidade, pode ser um pesadelo devastador na vida de um jovem.
Enfim, os anos passaram e eu estava quase me formando. Eu estava grávida, correndo para terminar as matérias antes de dar à luz. Descendo as escadas devagar por causa do barrigão, dei de cara com o Elivar subindo os degraus. Sorrimos no mesmo instante. Ele disse que eu estava linda grávida , e eu disse que estava muito feliz de saber que ele havia voltado para a faculdade. Rolou um abraço, mais um sorriso e um "depois a gente se topa". Lembro de falar: seus cds estão comigo! Mais um sorriso e cada um seguiu o seu rumo.
Nunca mais eu vi o Elivar. Pouco depois vieram as férias, eu dei à luz e no meio do meu resguardo tive a notícia do suicídio dele. Era época do ORKUT, e tinha um campo livre para as pessoas falarem sobre elas, de forma que esse texto aparecia na página de perfil. Eu entrei no perfil dele e vi que ele havia atualizado um dia antes com essa musica do Megadeth:
A tout le monde (To all the world)
A tous mes amis (To all my friends)
Je vous aime (I love you)
Je dois partir (I have to leave)
These are the last words
I'll ever speak
And they'll set me free
Como assim "set me free?" Eu simplesmente não entendia que liberdade era essa que ele havia buscado. Eu fiquei em choque, eu nem consegui chorar. "Nem deu tempo de devolver os cds". Coloquei o cd com a música que ele havia pedido para eu ouvir, alguns anos antes. A parte que ele tinha gostado era um solo de guitarra no fim da música. Me deu vontade de ouvir, como se ouvir a musica que ele gostava, de alguma forma me fizesse sentir perto dele. Eu fechei os olhos e ouvi com a alma. E eu entendi, eu finalmente entendi. Eu chorei tanto ouvindo aquele solo. E todas as vezes que eu ouço, eu entendo mais e mais, e o choro sempre vem. E eu fico muito triste de não ter entendido antes. De não ter entendido a tempo. De não ter como voltar atrás para fazer tudo diferente. Para ser mais amiga, mais paciente, julgar menos, ouvir mais.
Todas as vezes que eu ouvir essas músicas eu sei que vou chorar, não só de saudade, de remorso e todas essas coisas que passam na nossa cabeça. Mas principalmente porque eu penso na dor, no desamparo e na escuridão que ele vivia. No quanto deve ter sido horrível tentar se reerguer e cair logo em seguida tantas e tantas vezes. No quanto deve ter sido pesado ouvir as pessoas dizendo que era preciso reagir e seguir em frente, ao mesmo tempo que um peso insuportável o puxava para baixo. E que no esforço supremo de se manter de pé e sorrir, toda a sua energia se esvaía.
Hoje eu entendo que ele não estava interrompendo a si mesmo, sendo fraco e sorumbático. Na verdade ele estava sendo interrompido a todo o tempo, e ainda assim tentando ser forte e corajoso. Interrompido por uma pulsão de morte contínua, diante da qual ele foi se sentindo cada vez mais impotente.
Acho que todo mundo hoje em dia conhece alguém que suicidou, ou conhece alguém que tinha um vínculo forte com alguém que suicidou. E por isso é tão importante que possamos falar sobre isso, desabafar, pensar em possibilidades de prevenção e de cuidado com o outro.
Fui a um evento acadêmico sobre suicídio há menos de um mês. Foi um dia inteiro ouvindo vários pesquisadores de várias áreas falando sobre o tema. Em meio a tantos dados, reflexões e conhecimentos, um pensamento em particular me chamou mais a atenção.
Há muito anos nossa sociedade vem apresentando sinais de esgotamento psíquico, que podemos perceber através do aumento significativo de transtornos e síndromes (depressão, síndrome do pânico, ansiedade generalizada, transtorno bipolar de humor, transtornos alimentares, síndrome de burnout, etc.) que acometem cada vez mais pessoas de todo o mundo, inclusive de todas as faixas etárias. Esse adoecimento coletivo não é recente, embora tenha progredido com mais velocidade nos últimos anos. Se pensarmos que se trata de um fenômeno coletivo, podemos pressupor que existem "causas" sociais envolvidas neste processo. São os chamados determinantes sociais de saúde. Isto quer dizer que fatores sociais podem influenciar na nossa saúde. De forma positiva ou negativa. Desta forma, disfunções e problemas sociais podem se constituir em fatores de risco na saúde das pessoas, levando a processos coletivos de adoecimento.
Se estamos falando de um adoecimento coletivo, é preciso entender que um tratamento individual será apenas um paliativo neste contexto, pois enquanto a causa coletiva não for identificada e solucionada, a sociedade como um todo continuará a adoecer. Alguns psiquiatras e psicólogos de algumas décadas atrás já haviam percebido essa dinâmica social. Eles previam que a cada geração o sofrimento psíquico da população seria maior e mais incapacitante. Sabendo que uma doença não tratada progride até culminar em incapacitação e/ou em morte, para estes estudiosos era muito claro que se as coisas continuassem como estavam, em uma geração lá na frente a coisa toda teria sua culminância: as pessoas começariam a se matar. Não entre si, mas a si mesmas. Morte auto-infligida em larga escala.
Parece macabro pensar que podemos estar em meio a uma epidemia de suicídio, e mais bizarro ainda pensar que ela já havia sido prevista por pessoas que viveram em gerações anteriores à nossa (como só ouvi falar disso muito rapidamente no evento que fui, ainda estou buscando mais fontes sobre o assunto). Por isso, mais do que nunca, devemos falar sobre isso sim. Também temos que cuidar uns dos outros, porque afinal todos sofremos de alguma forma, seja por nós mesmos, seja por alguém que partiu e nos deixou. Ou pelos que ainda partirão. O que podemos fazer para evitar que tantos outros se vão? O que está tão errado assim?
Enquanto tantas perguntas ecoam sem resposta, algumas reflexões podem nos servir como um pontinho de luz no meio da escuridão:
"Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente" (Jiddu Krishnamurti)
Ps: fiz esse post depois que o @matheusggr fez uma postagem sobre o setembro amarelo e convidou a comunidade a postar/comentar sobre o tema. achei digno e resolvi aderir.
https://steembr.com/pt/@matheusggr/saude-setembro-amarelo-no-steemit
Parabéns, seu post foi selecionado pelo projeto Brazilian Power, cuja meta é incentivar a criação de mais conteúdo de qualidade, conectando a comunidade brasileira e melhorando as recompensas no Steemit. Obrigado!
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Caramba essa música fez parte da minha adolescência, até fui ouvir de novo umas três versões diferentes que encontrei no youtube. Trabalhei com arte educação de adolescentes na periferia de São Paulo. A questão do suicídio sempre aflorava nos processos criativos. Sentia que na arte eles se resolviam, contudo o programa está sendo abandonado aos poucos. Uma pena!
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Oi @guifaquetti! Essa música é tão linda né. Que legal o seu relato sobre sua experiência nesse projeto. Eu tenho certeza que a arte é umas das formas mais eficazes para lidar com as nossas angústias, aliás Freud já dizia isso né. Que pena que o projeto não está indo para frente, o que aconteceu? Falta de recurso financeiro?
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Falta de recursos e falta de vontade politica. Creio que sejam os dois, com uma prefeitura que até diretor de CEU é contratado com cargo comissionado de vereador, e que orientadores e articuladores culturais tem contratos com prazo determinado em décadas de programa, difícil acreditar que seja só a questão financeira.
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Compartilho da mesma indignação
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Que relato forte e ótima escrita. Como nos atinge quando acontece esses casos. E o que faz ser importante trazer a linguagem, as discussões, para que muitos entendam como trouxe, que o que molda o coletivo é o individual, e como essa relação mutua, se esquece de muitas formas. Um não excluiu o outro, é preciso lidar com individual e atuar no coletivo, ou como disse será sempre um paliativo.
E acredito que relatos assim, já tem ação no coletivo, pode não ter agora, ou para quem lê e nunca viveu situação parecida, mas eventualmente quem leu saberá mais sobre, do que o sensacionalismo que a mídia faz.
A sociedade do trabalho, da honra, do dinheiro, do consumo, é em muitos casos a sociedade do esgotamento, da solidão, do sofrimento. Claro em termos gerais, e não a toa a migração de tantos para o espaço virtual, em busca de espaço para além das cobranças que o viver por dinheiro proporciona.
Se tornou difícil pensar, refletir, saber sobre si próprio, saber os próprios desejos e limitações, as próprias responsabilidades, em um ciclo vicioso que estamos longe do fim. Pelo menos acredito que com a tokenização da internet teremos uma mudança, como ela ira ser só o tempo dirá, mas acredito que seja difícil piorar.
Obrigado por trazer esse rico conteúdo ao Setembro Amarelo aqui no Steemit também!
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Oi Matheus, obrigada pelas considerações, muito pertinentes por sinal. Você como psiquiatra deve ter muito contato com esse sofrimento todo, não deve ser fácil, mas é louvável que existam profissionais que lidam diariamente com a dimensão individual. E que ao mesmo tempo tenham consciência da dimensão coletiva.
Quando você diz que acha difícil a coisa toda piorar, eu tento concordar com esse pensamento. Eu quero acreditar que vamos encontrar uma solução. Eu não entendo muito de tokenização mas tb acredito que a nossa migração para o espaço virtual nos trará bons frutos.
Obrigada pelo incentivo : )
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