Crianças são separadas dos pais, enquanto tentam atravessar ilegalmente a fronteira dos Estados Unidos da América com o México. É este um dos temas mais controversos e revoltantes da atualidade, numa altura em que o presidente americano, Donald Trump, insiste em descrever a fronteira sul dos Estados Unidos como um local selvagem controlado pelos fora-da-lei. O que, obviamente, parece ficar distante desse discurso populista é a noção de que uma grande parte das pessoas que navegam pelos desertos mexicanos em busca de solo americano são nada mais que cidadãos inocentes à procura duma vida melhor, do “sonho americano” – que sonho é esse hoje em dia? – que, apesar de tudo, lhes proporcionaria melhores condições de vida, para si e para os filhos que levam debaixo da asa. Escusado será referir que a criminalidade inerente a esse processo de migração ilícito é, claro está, palpável e deve, com certeza, ser abordada pelas autoridades competentes da forma mais correta possível, independentemente das descrições parciais de Trump. Como tal, muitos se terão afundado na cadeira do cinema quando 'Sicario: Day of the Soldado' fez de sua premissa um ataque terrorista em solo americano que, conforme é sugerido, só foi possível devido à infiltração dos seus perpetradores através da fronteira com o México, com a ajuda dos cartéis de droga. Os primeiros minutos do filme são uma quase simulação dum panfleto pró-direita republicana, uma manifestação literal dos discursos mais inflamados de Trump, repletos da sugestão demagoga de que todos os refugiados são um potencial terrorista. O problema não reside nesse conteúdo áspero, já que estamos perante uma descrição minimamente realista duma situação plausível, mas sim na forma como o filme rodeia esse momento duma série de sequências que desumanizam por completo os refugiados fictícios que vão sendo apresentados. Com a intenção de montar um filme de guerra, numa ilustração sinistra do banditismo fronteiriço, o realizador Stefano Sollima e o guionista Taylor Sheridan esqueceram-se do momento social e político em que vivemos – não podiam ter tido mais azar no timing da estreia –, sobrando um desenho da fronteira sub-humano, um festim apenas acessível aos perversos, um Inferno onde tudo é descrito como uma ameaça. Sobra um repasto audiovisual magnético, talvez demasiado apegado ao seu antecessor, que, apesar do fascinante clima de tensão, falha em transmitir qualquer comentário político, social ou metafórico. E a razão é muito simples: em 'Day of the Soldado', quase todas as personagens, principalmente as mexicanas, parecem meros acessórios ao serviço duma máquina devoradora de corpos, mais interessada em expressar brutalidade do que em explorar as razões dessa violência – um filme sem centro moral que faz do espectador um simples passageiro, passivo e ausente. Já vai para velha esta mania do cinema americano de transformar a maioria dos filmes sobre a fronteira, e não só, em ensaios unilaterais onde impera essa permanente animosidade contra os Estados Unidos, onde os norte-americanos, mesmo que atuem de forma perversa, são sempre a solução e nunca o problema. E muitos poderão subestimar o peso do cinema e da cultura popular na psique americana, mas a verdade é que uma grande percentagem dos cidadãos norte-americanos preferem, de acordo com estudos recentes, acreditar nas narrativas cinematográficas, ou nas histórias contadas em blogues e televisões privadas, do que em descrições realistas e documentais trazidas por fontes independentes e credíveis. De modo que, independentemente de se qualificar como um thriller relativamente competente e atraente, a esta sequela de 'Sicario' (2015) terá de ser passada uma multa por irresponsabilidade, pois esta insiste numa exposição incompleta da realidade fronteiriça.
Talvez a falta desse tal pêndulo moral esteja associada à ausência da personagem principal do primeiro filme, a agente Kate Macer, interpretada por Emily Blunt. No meio de figuras ambíguas como o solucionador de problemas Matt Graver, interpretado por Josh Brolin, e o misterioso Alejandro, encarnado por Benicio del Toro, a jovem funcionou como um refúgio para a curiosidade do espectador, uma espécie de avatar que nos levava a viajar pela selva urbana em busca dum segredo que o cineasta Denis Villeneuve tão bem soube camuflar. Nesta sequela, porém, ficámos sem guia, desapossados dessa bússola emocional que transpirava ingenuidade e decência no meio de tanta podridão, um depositário para as nossas dúvidas e sensações conflituosas. Essa fabulosa qualidade foi arrancada desta sequela, substituída por uma estirpe agressiva de niilismo que nos convida a entrar, mas deixa sempre a porta aberta, caso queiramos virar costas e fugir. E é fácil fugir deste 'Day of the Soldado', pois nunca consegue ser um filme coeso a nível da narrativa, apesar do seu inegável mérito estético. A sua história é relativamente óbvia: após o dito ataque terrorista, o governo dos Estados Unidos, personificado por Matthew Modine e Catherine Keener na pele de dois políticos com poucos escrúpulos, declara uma guerra silenciosa e matreira aos cartéis mexicanos. Para tal, recorre novamente aos talentos obscuros de Graver que, por sua vez, recruta o seu ativo favorito, o sicario Alejandro. Brolin e Del Toro fazem, mais uma vez, um trabalho extraordinário, completamente cientes das nuances negras das suas personagens, com especial destaque para o porto-riquenho que, como se costuma dizer, nasceu para o papel. O mesmo não se pode dizer de Modine e Keener, entregues a duas personagens superficialmente elaboradas, que acabam por funcionar como um desapontante simulacro do que seria uma exploração política e logística da situação apresentada. O único suporte dramático do filme é uma jovem, interpretada por Isabela Moner, filha do chefe dum dos cartéis alvo da ira do governo americano, que é raptada com o intuito de despoletar uma guerra entre entidades criminosas. Nas mãos dos dois machos tóxicos, Graver e Alejandro, esta transforma-se numa fonte de ambivalência, uma vez que leva os dois homens a testar os seus limites morais e psicológicos. Contudo, essa luta interior nunca é devidamente espicaçada, ao ponto de se perder no meio da carnificina exibida.
Pegar numa herança deixada por algumas das pessoas mais competentes da indústria cinematográfica, como Denis Villeneuve, Roger Deakins e o falecido Jóhann Jóhannsson, não se adivinhava tarefa fácil, assim como não é todos os dias que se reúnem as condições ideais para concretizar um filme tão cínico e clínico como 'Sicario'. Como tal, há que dar o crédito a Sollima, realizador de projetos focados na máfia como 'Suburra' (2015) ou a fantástica série 'Gomorra', por fazer valer as características conceptuais e auditivas do original, agora nas mãos do cinematógrafo Dariusz Wolski e do compositor Hildur Guõnadóttir. Se bem que 'Day of the Soldado' possa ser acusado de imitar alguns dos traços do seu antecessor, há também que salientar a envolvência do filme desde o primeiro minuto até ao fim. Ao longo de duas horas duras e cruas, podemos encontrar esboços do cinema de Kathryn Bigelow, com o ballet mórbido dos militares de arma em riste a fazer-se notar, principalmente nas cenas de visão noturna, ou uma recriação poeirenta dos tiroteios eximiamente construídos por Michael Mann, com espaço ainda para o pulsar tímido dum coração sediado nos neo-westerns dos irmãos Coen, cheios de personagens cinzentas, pinceladas por um humor sardónico e doentio, com a caneta de Taylor Sheridan sempre no ponto quando toca ao cinismo. Enfim, o resultado oco desta equação é a garantia de visceralidade e suspense para os que procuram um filme de ação bem executado e que não obrigue a nada mais do que um raciocínio fácil e rápido sobre o quão longe se pode ir em nome duma paz inalcançável, já que os cartéis mexicanos estão muito longe de ser extintos. Bastará referir que nas últimas eleições mexicanas foram assassinadas mais de duzentas pessoas por razões aparentemente políticas. Em suma, esta nova fábula de Sheridan sobre a bestialidade da fronteira fica aquém do filme anterior e do momento social atual, já que, seja qual for a mensagem que se pretendia passar, esta parece ter-se perdido no meio do deserto, no chão árido por onde, diariamente, vagueiam dezenas de migrantes perdidos, relegados mais uma vez para a categoria de acessório pela máquina de Hollywood.
Vou ver amanhã.
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Força. Não está tão bom quanto o primeiro, mas, mesmo assim, vale a pena a ida ao cinema sem dúvida.
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