Quem pensa que a história do jurídica é a história real, pensa que com o passar do tempo, a humanidade acumulou mais direitos e, assim, acumulou mais liberdade que as gerações ancestrais.
Quem examina a história da evolução dos meios técnicos e efetivos de poder, contudo, conclui que nós hoje temos muito menos liberdade que nossos ancestrais.
Para ilustrar esses ponto, cito o texto abaixo. Volto depois com o raciocínio.
Mais de vinte anos atrás, em plena TV aberta:
— Na sua opinião, o capitalismo está naufragando no mundo também?
— Não, de maneira alguma, mas o capitalismo em estado puro, o capitalismo liberal, não existe mais. Na verdade, nós temos hoje uma economia bastante dirigida. Desse ponto de vista, eu vejo o mundo de uma maneira um pouco negativa, porque nós vemos que o tipo de economia que vai se montando no mundo hoje, globalizado, não é uma economia capitalista, não é uma economia liberal, mas é quase uma economia fascista, quer dizer, é um capitalismo monopolístico com uma tendência dirigista e centralista muito grande.
— E corporativista.
— E corporativista. E, nesse sentido, tanto quem se diz de direita quanto quem se diz de esquerda, 'tá contribuindo exatamente pra isso.
— E o senhor acha que nós caminhamos pra onde?
— "Nós" no Brasil?
— Não, no mundo.
— Eu acho que nós estamos indo para pelo menos uma economia de tipo, digamos, um fascismo globalizado.
— Isso é bom?
— Não, de maneira alguma. Não precisa nem explicar. Isso é uma coisa temível. É evidente que não será um fascismo truculento, como já tivemos uma vez...
— "Fascismo" por causa das corporações, "fascismo" por causa do dirigismo...?
— É um pseudo-capitalismo. Na verdade, um capitalismo monopolista, centralista, planificado, e onde toda a cultura, os valores, os hábitos humanos são todos moldados pra isso. Quer dizer, não chega a ser um comunismo, mas é um fascismo.
— E existiria, por exemplo, discordâncias internamente, ao ponto de admitir algum [palavra inaudível]?
— Eu não sei se haverá espaço para isso dentro de alguns anos. A gente vê que a margem das discussões parece estreitar a cada dia, e a margem para o exercício da inteligência diminui a cada dia. Eu não quero ser apocalíptico, não quero ser profeta da desgraça, mas parece que 'tá indo pra esse lado, né? Nesse sentido, as ideologias de esquerda e de direita representam como que duas alas de um processo único, que 'tá indo, de qualquer maneira, para uma centralização. Essa tese, aliás, não é minha: a tese é de um livro do Bertrand de Jouvenel, que eu considero o melhor livro de Ciências Políticas que alguém já escreveu, que se chama 'Du Pouvoir', 'Sobre o Poder', onde ele, examinando a história do Ocidente nos últimos séculos, diz: haja o que houver, sempre o poder sai mais poderoso. Quer dizer, o poder 'tá sempre mais centralizado, e sempre mais distante do cidadão comum. Se nós vemos, por exemplo, qual o poder que tinha o senhor feudal sobre o camponês?
— Total.
— Total pela lei, mas que instrumentos efetivos ele tinha?
— Econômicos? Ele tinha... era o dono da terra.
— Não, não, não, de jeito nenhum. A legislação previa tantos limites ao exercício desse poder que, na verdade, ele ficava reduzido a uma superioridade muito pequena. Agora, se você pegar um governante de hoje, o governante de hoje tem poder total sobre populações inteiras.
— Então na sua opinião o senhor feudal tinha menos poder que...?
— Menos poder. Certamente.
— Então esse é um equívoco no qual eu incorro também...
— O senhor feudal não tinha quase poder nenhum, se comparado com um governante atual; ele tinha mais direitos por lei, mas não meios de exercer o poder. A confusão toda vem de que geralmente a nossa cultura tende a identificar a história jurídica como se ela fosse toda a história. Pela história jurídica, você vê que os direitos da população foram se ampliando, mas se nós, em vez de nos atentarmos para a história jurídica, fizermos a história dos meios efetivos de poder, então o governante atual é quase um deus.
— Mas esse poder emana do povo.
— Teoricamente, teoricamente; mas, na prática, nós sabemos que o problema não é esse. Por exemplo, nos governos atuais, não só os governantes, mas também as empresas têm meios de produzir opinião pública. Esses meios, por exemplo, seriam impensáveis para qualquer governante antigo. Júlio César não pensaria numa coisa dessas.
— O senhor fala em publicidade e propaganda?
— Eu vou lhe dar um exemplo. Quando Luís XIV quis formar o seu exército, ele teve que ir pessoalmente de cidade em cidade pedindo pelo amor de Deus para que [as pessoas] se alistassem, e conseguiu formar um exército de 144 mil pessoas, que era o maior da Europa. Quando veio a Revolução Francesa, então se criou o recrutamento militar obrigatório e em questão de algumas semanas você tinha um exército de milhões de pessoas, e quem não quisesse se alistar ia pra guilhotina. Hoje o serviço militar [obrigatório] nos parece uma coisa inteiramente normal. Nós nos acostumamos com esse privilégio da autoridade, então já não nos parece opressivo, porque nós nos acostumamos com tudo. Quando chegam, então, esses grandes regimes totalitários do século XX — nazismo, fascismo, comunismo —, bom, esses têm o direito de fazer o que quiser conosco, quer dizer, dizem onde você vai morar, dizem onde você pode trabalhar, se um dia você pode casar... quer dizer, há um controle muito grande, que os governantes da Antigüidade — vamos dizer, da Renascença, da Idade Média, da Antigüidade — nem poderiam imaginar. Júlio César nunca pensou em ter um poder, por exemplo, de deslocar sessenta milhões de pessoas, como fazia Stálin: "Temos que tirar esse sujeito daqui e botar lá". Essa idéia não ocorreu a Júlio César ou a Átila, o Huno, e lhes pareceria monstruosa, na verdade.
(Olavo de Carvalho em entrevista ao programa Passando a Limpo, 20/09/1998.)
Todo poder obtido pelos dominantes em nossa geração, em todo seu absurdo, será considerado normal para a geração futura.
O mesmo se dá por exemplo com a questão da privacidade. Os meios técnicos para violá-la estão ao mesmo tempo tão acessíveis à classe dominante e tão inacessíveis ao cidadão comum. Eu posso confirmar isso na segurança da informação. A barreira de entrada parece cada vez mais alta, e a recompensa por ter entrado parece cada vez maior.
Por isso creio que a liberdade, a privacidade tenha que ser ensinada. É preciso restaurar essas idéias em nossos filhos e netos, para que eles tenham noção do quão anormal é sua situação comparado ao que viveu toda a humanidade.
E não, não se pode ter nenhuma noção dessas coisas sem estudar com seriedade como foram as épocas passadas. Conheçamos o mundo para que ele não nos domine.
Estudemos.