Entre a Razão, a Arte, e o Fado: Representações do Estado Novo sobre Coimbra (pt 1)

in pt •  6 years ago  (edited)

Universidade de Coimbra

Resumo

No presente texto, como o título indica, procurar-se-á entender uma possível relação entre a razão/conhecimento, a arte, no sentido das “artes visuais” (arquitectura, escultura, pintura, cinema), e o Fado (de Coimbra). Da intercessão destas três áreas será possível entender uma determinada representação da cidade de Coimbra, ou de parte dela, perpetrada pelo Estado Novo de Salazar, apoiada pelos órgãos oficiais da Universidade, e concretamente contestada e sofrida pelos chamados Futricas, os não-estudantes. Recorrendo ainda à ideia, cara a Barbara Kirshenblat-Gimblett, de uma segunda vida do património, pretender-se-á reflectir sobre a consagração da Universidade, Alta e Sofia enquanto Património Mundial da Humanidade.

Introdução

A identidade nacional, no caso português, e sobretudo no decorrer do Estado Novo, passou pela representação de uma nação fundamentada no “povo”, na cultura popular, e nos valores que, supostamente, seriam veiculados através dela. No fundo, uma ideologia que iria de encontro àquela reinante desde finais do século XIX, entre alguns dos Estados europeus que procuravam a concepção e legitimação da Nação segundo um modelo etno-genealógico da mesma: “assente em ideias de descendência e de partilha de uma língua e uma cultura comuns” (Leal, 2010). João Leal (2010) acrescenta ainda que “mesmo em nações onde prevaleceu o modelo cívico-territorial, baseado em ideias de partilha de um mesmo território e dos mesmos deveres e direitos, houve fases importantes de construção da identidade nacional, nas quais as ideias etnoculturais sobre o povo desempenharam um papel importante”. A idealização romântica de uma cultura popular, do povo, genuína, autêntica, antiga, e por isso mesmo nacional, “sobreviveu” à viragem do século, percorreu todo o século XX, e continua a manifestar-se nestas primeiras décadas do século XXI sob a forma de Património da Humanidade, de carácter universalista e simultaneamente nacionalista e regionalista, de iniciativas regionais de certificação de determinada prática, de confrarias dedicadas à gastronomia, dos numerosos grupos etnográficos ou ranchos folclóricos que se encontram e reencontram em festivais internacionais de folclore, novamente de carácter regional, nacional, e global, etc..

Regressando ao século XX, mais especificamente ao período do Estado Novo em Portugal (1933-1974), os usos da cultura popular afinaram pelo diapasão da ideologia internacional, não fosse esta representação da identidade, funcional quer internamente, quer no exterior, no “jogo” identitário das nações. O SPN[ Secretariado de Propaganda Nacional], órgão máximo da propaganda do regime, criado em 1933, e mais tarde redenominado de SNI[ Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo], “desenvolveu uma política folclorista sistemática e continuada no tempo, com repercussão a nível interno e fora das fronteiras portuguesas” (Alves, 2012). E se algumas explicações mais generalistas advogam que estes incentivos à cultura do popular procurariam educar o gosto dessas classes “populares”, outras alegam que essas representações eram, na prática, expostas no contexto urbano, para que as classes médias e até as mais altas vislumbrassem um rasgo do tradicional e genuinamente português (Alves, 2012). Muitas vezes eventos dirigidos inclusive a estrangeiros, e com notável presença das elites nacionais, como refere Vera Alves (2012), reflectem o carácter intra e internacional que o SPN inculcava no seu envolvimento com o “popular”. E que envolvimento? A promoção de um gosto pelo “genuinamente português” a nível interno, e uma imagem genuinamente antiga e fundamentada no povo, na história, a nível internacional? E de que forma é que podem todas essas expressões do popular ser equacionadas com o suposto modernismo do século XX?

Um caso curioso é o da arquitectura “popular” em Portugal, ou das visões sobre ela. Enquanto o Movimento da Casa Portuguesa de Raúl Lino, no início do século XX, assentava num certo decorativismo, em detrimento do seu funcionalismo, pensando-a homogénea de norte a sul, o Inquérito à Arquitetura Popular dos anos sessenta discursava sobre uma intercessão entre moderno e vernacular, de acordo com as condições que cada contexto regional exigiria funcionalmente (Leal, 2010). O primeiro movimento distanciava-se claramente da sobriedade e funcionalismo da arquitetura moderna, como resposta talvez a um modernismo assustadoramente radical, ou simplesmente por conservadora convicção. Seis décadas passadas, e o segundo envergava por um regionalismo que aliava o carácter genuíno do popular, à sua especificidade técnica e funcional imposta pelas condições de relevo, clima, e produção, por exemplo (Leal, 2010). A dicotomia “moderno/popular” não deixa de ser curiosa, tanto quanto a de “campo/cidade”, provavelmente uma como o negativo da outra. O progresso da modernidade parece ter exigido a sua legitimação e/ou contraponto na temporalidade e genuinidade do que era imaginado como popular. E o popular imaginado em função das exigências da modernidade.

Bibliografia


Imagem 1

Alves, V. M., 2012. A poesia dos simples: arte popular e nação no Estado Novo. Etnográfica [Online], Vol. 11 (1), 26 Setembro.
Castela, L. P. R., 2011. A Guitarra Portuguesa e a Canção de Coimbra: Subsídiospara o seu estudo e contextualização. s.l.:Dissertação de Mestrado em Estudos Artísticos (Estudos Musicais), apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Kirshenblatt-Gimblett, B., 1998. Destination Culture. Los Angeles: University of University Press.
Leal, J., 2010. Usos da Cultura Popular. In: Como se faz um povo: Ensaios de História comtemporânea de Portugal. Lisboa: Tinta-da-China, pp. 125-137.
Nunes, A. M., 2002. Da(s) Memória(s) da Canção de Coimbra. In: Canção de Coimbra: Testemunhos Vivos. Coimbra: Coimbra Editora, pp. 09-69.
Rosmaninho, N., 2006. O poder da Arte: O Estado Novo e a Cidade Universitária. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.

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Excelente artigo! :)

Obrigado. Na segunda parte vou juntar um link do filme "Capas Negras". Estive a rever aquilo e até mete impressão. A contrução simbólica da "tricana" é assustadora. Temo que as feministas menos compreensivas me denunciem o post... :D

;)

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