Entre a Razão, a Arte, e o Fado: Representações do Estado Novo sobre Coimbra (pt 2)

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“Capas Negras” e Fado de Coimbra

O chamado “Fado” de Coimbra teve também um papel na imaginação de um espaço universitário. Tomando como exemplo o que se passou com Flávio Rodrigues da Silva, barbeiro na Alta de Coimbra, pelo menos até ao inicio das demolições, e guitarrista, que pela localização do seu estabelecimento e pelos serviços que prestava, como barbeiro e como professor de guitarra, tinha uma relação bastante próxima com vários elementos da comunidade estudantil (Nunes, 2002). E assim como Flávio, também Fernando Rodrigues da Silva, seu irmão, e Lopes da Fonseca, barbeiros, dava continuidade ao ensino da guitarra e do violão. Acabou Flávio Rodrigues por falecer, já nos bairros construídos em Celas, em Agosto de 1950, e com a sua ausência a atividade musical no seio da sociedade não-estudante foi-se (Nunes, 2002).
O filme “Capas Negras”- para o qual deixo aqui o link e recomendo que vejam, pois com um olhar critico, orientado pelo exposto neste post, melhor perceberão aquilo que aqui mesmo se pretende expôr -, realizado por Armando de Miranda em 1947, apresenta-se como um bom exemplo dessa imagem de Coimbra enquanto cidade universitária. A acção desenrola-se maioritariamente na cidade, e procura representar as vivências e desventuras de um grupo de estudantes. Os romances entre estes e as “tricanas” (mulheres jovens da população não-estudante) assumem-se como o motor da história. Nos primeiros minutos surge um desses estudantes, por sinal, do curso de Direito, tocando guitarra e cantando uma serenata amorosa para uma tricana, a Maria de Lisboa, interpretada por Amália Rodrigues, que por sua vez o escuta atentamente desde uma janela. A relação entre estudantes e tricanas, com a quase ausência de homens futricas, e do “fado” de Coimbra radicado no ritual de serenata amorosa, as festas populares, e os espaços emblemáticos da mesma, nomeadamente o Jardim da Sereia, ou as Repúblicas onde os estudantes habitavam. Na opinião de Luis Castela (2011) trata-se de um filme repleto de lacunas e diversas fundamentações fraudulentas, de encontro a uma caracterização do género musical coimbrão sob a forma de um ideal romântico, que o próprio regime tentava impor. A canção mais popular do filme, Coimbra (Avril au Portugal) tornou-se um ícone no exterior, mas em Coimbra foi anatemizada por aquilo que ela representava sobre a cidade e as sociedades que a ocupavam (Nunes, 2002). E se o fado de Coimbra se pretendia radicado nesse ritual da serenata amoroa, pergunta António Manuel Nunes (2002), porque é que neste período houve um tão grande investimento nas emissões radiofónicas, gravação de discos, e espectáculos para plateias? A saturação dos símbolos do “fado” aliás, vai a tal ponto, que o alfinete que a “Maria de Lisboa” usa na sua camisa tem o formato de uma guitarra portuguesa.
A narrativa deste filme procura omitir a presença ativa dos “futricas” na sua própria cidade, explora o “fado” de Coimbra enquanto produto do ritual romântico da serenata executada por estudantes, sempre de capa aos ombros, e dedicado às jovens “tricanas” da cidade. Apresenta os estudantes, os seus supostos hábitos de pandega, consumo de álcool, e de habitação e convívio nas “Republicas”. E curiosamente os “futricas” surgem quase exclusivamente como funcionários ou comerciantes, mas no fundo, anónimos, prestadores de serviços, sem uma voz efetivamente ativa.

Universidade, Alta e Sofia: Património da Humanidade

No dia 22 de Junho de 2013, sábado, os jornais e telejornais transmitiram a notícia de que a Universidade tinha sido consagrada Património da Humanidade pela UNESCO. A candidatura compreendeu a cidade universitária na Alta, a Catedral da Sé Velha, a Rua da Sofia, e o Fado de Coimbra, que se aliou à candidatura da Universidade por meio de um protocolo assinado entre esta última e a Camara Municipal. Se se levarem em conta as afirmações de Barbara Kirshenblatt-Gimblett (1998) acerca do património, de que este, apesar de parecer antigo, é na realidade algo recente. Segundo a autora (1998) “o património consiste num modo de produção cultural no presente que tem recurso ao passado”. Assim definido, depende da sua exposição, para dar às economias moribundas e a espaços mortos uma segunda vida enquanto exibições de si mesmas (Kirshenblatt-Gimblett, 1998). Não se afirma que os espaços universitários na Alta estejam mortos, mas é verdade sem dúvida que já antes da sua consagração enquanto Património, a Universidade e a Sé Velha eram percorridas por turistas (quase) todos os dias. Vivendo junto aos “Paços da República dos Kágados”, posso afirmar, com grande admiração, devo confessar, a incrível atracção que esta resulta ser para vários grupos de turistas, que escutam as explicações do guia turístico e de um dos membros da República responsável pela transmissão da história e curiosidades acerca da vida académica, e posteriormente a isto fotografam a sua fachada muito “própria”. Sem dúvida alguma que a cidade universitária, assim como a Rua da Sofia, veem agora novos significados a serem somados aos que já tinham, e neste sentido, uma segunda vida. E como as indústrias do património e do turismo colaboram entre si, a questão da “economia moribunda” que Kirshemblatt-Gimblett refere pode tarar-se ainda mais relevante atendendo ao contexto socioeconómico que se vive no país, em geral, e em particular as questões de financiamento do ensino superior.
A consagração da cidade universitária pode manifestar-se enquanto solução para as imperfeições da história (Kirshenblatt-Gimblett, 1998). Ou melhor ainda, como forma de omitir e empurrar para o esquecimento a ideologia e as ações levadas a cabo para a construção de uma cidade que se pretendia quase exclusivamente dos estudantes, pelo menos por parte do Estado Novo e dos seus apoiantes. No fundo, patrimonializaram-se, em parte, edificações salazaristas erguidas entre a década de 40 e de 70, inventaram-se novas razões para perpetuar a prática da Praxe, e apresenta-se uma imagem da Universidade enquanto harmoniosamente e historicamente integrada na vida da Cidade de Coimbra, num percurso mais ou menos contínuo e desproblematizado. Sem alegar no entanto aos vários edifícios uns mais enraizados do que outros na história do país.

Para concluir, poderá afirmar-se que a consagração enquanto Património da Humanidade pretenderá atribuir determinados significados, neste caso concreto, à cidade e à vida académica, omitindo, ou eufemizando, os choques entre comunidades e indivíduos, entre Estado e populares, esquecendo as demolições e as indevidas expropriações, e as funções que a arte e arquitetura desempenharam, e talvez ainda desempenhem, nesse espaço. A cidade universitária de Coimbra, e o imaginário elaborado em seu redor pela mão do Estado Novo passam pelo diálogo entre o moderno e um certo “popular-estudantil”, entre a arquitetura sanadora do corpo, da moral, e do espirito, de uma arte assente numa determinada memória do passado histórico da nação, e de uma série de rituais da academia, desde a Praxe, aos rituais mais solenes, até ao romantismo da serenata amorosa do fado de Coimbra. Não se pretende defender aqui a maior legitimidade histórica do Observatório Astronómico, mandado erguer pelo Marquês do Pombal, do que os edifícios construídos sobre os seus escombros. O que se pretende acima de tudo é: por um lado sondar sinteticamente uma das expressões da modernidade no decorrer do Estado Novo, e de como de alguma forma se interconectava com a tradição popular e romântica no imaginário que lhe era construído; e por outro refletir acerca da sua consagração enquanto Património da Humanidade, e da possibilidade que isto oferece na reelaboração de uma história da cidade universitária.

Bibliografia


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Alves, V. M., 2012. A poesia dos simples: arte popular e nação no Estado Novo. Etnográfica [Online], Vol. 11 (1), 26 Setembro.
Castela, L. P. R., 2011. A Guitarra Portuguesa e a Canção de Coimbra: Subsídiospara o seu estudo e contextualização. s.l.:Dissertação de Mestrado em Estudos Artísticos (Estudos Musicais), apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Kirshenblatt-Gimblett, B., 1998. Destination Culture. Los Angeles: University of University Press.
Leal, J., 2010. Usos da Cultura Popular. In: Como se faz um povo: Ensaios de História comtemporânea de Portugal. Lisboa: Tinta-da-China, pp. 125-137.
Nunes, A. M., 2002. Da(s) Memória(s) da Canção de Coimbra. In: Canção de Coimbra: Testemunhos Vivos. Coimbra: Coimbra Editora, pp. 09-69.
Rosmaninho, N., 2006. O poder da Arte: O Estado Novo e a Cidade Universitária. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.

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