Uma história da Canção de Coimbra no decorrer do séc. XX (pt. 1)

in pt •  6 years ago 

Resumo



Neste post e nos que se seguirão, procurar-se-á construir uma linha temporal preenchida por alguns dos acontecimentos mais pronunciados no que se considerará Fado e/ou Canção de Coimbra. Sem querer problematizar a própria ideia de “Fado” ou “Canção” de Coimbra, propõe-se um percurso histórico, desde finais do século XIX até ao final do século XX, no qual se verão reflectidas esta, e outras questões, contextualizadas, e dentro do possível, associadas aos agentes, que muitas vezes eles próprios as levantavam.

Introdução

A problemática sobre a natureza do conceito de “Fado e/ou Canção” de Coimbra, por muito que se lhe queira fugir, impõe-se cada vez que se pretende chamar pelo nome ao objecto que aqui se pretende abordar. Partindo da própria bibliografia consultada - “Canção de Coimbra: testemunhos vivos” (Pelouro da Cultura-AAC, 2002) – o titulo refere a “Canção”, mas já na “Nota Introdutória” o presidente da DG AAC, Victor Hugo Salgado, escreve sobre a iniciativa de criar um livro em que contava «assim com o depoimento de várias pessoas relacionadas com o “Fado” e a Academia de Coimbra desde a década de 40 até à década de 90». O “Fado” (entre aspas) surge novamente na “Nota Introdutória” na página e meia que esta ocupa. Na dissertação de Mestrado em Estudos Artísticos de Luís Pedro Ribeiro Castela (Castela, 2011) no final do “Capítulo I” discute o «”Chamado Fado de Coimbra”» e as «Origens do mito do “Fado de Coimbra”», argumentando que sim, poderá até existir Fado em Coimbra, a partir de 1850, mas que já antes desta data dois filões musicais se poderiam distinguir nas dinâmicas da cidade: o dos chamados Futricas ou não-estudantes (a população por assim dizer) e o filão Académico ou dos estudantes, maioritariamente vindos de outras zonas do país. Não significa isto que essas duas realidades não se intercetassem num vasto leque de relações, fossem estas de natureza conflituosa, que se intensificaria no período das festas populares, fossem de natureza mais “altruísta”, humanista ou de intervenção social - como a fundação da Sociedade de Instrução dos Operários por parte de estudantes em 1851 -, comercial, etc. (Castela, 2011). Pensar a Alta da cidade enquanto espaço exclusivo da “sociedade académica” e a zona da Baixa e dos arredores enquanto espaço dos populares e trabalhadores será talvez um pouco ingénuo. Tanto quanto, talvez, pensar as “sociedades” académica e “futrica” (não-estudante) como homogéneas em si mesmas, e falando cada uma delas a uma só voz. Talvez os conflitos na Universidade de finais do século XIX e primeiras décadas do séc. XX sirvam de exemplo, mas dado o objecto desta abordagem, Flávio Rodrigues da Silva, barbeiro na Alta da cidade, guitarrista, e professor de guitarra, que pelo menos desde os anos 20 até à década de 50, participou na cena musical de Coimbra, mantendo uma ligação com o meio estudantil, quanto mais não fosse, pelo ensino de guitarra e pelos seus serviços como barbeiro (Lopes, A Canção de Coimbra como Património Imaterial, 2011).


Na imprensa a questão “Fado e/ou Canção de Coimbra” adensa-se. Numa notícia do diário “As Beiras” (Franklin, 2012), aquando da noticia do reconhecimento, em 2011, do Fado (de Lisboa) enquanto “Património Imaterial da Humanidade”, as opiniões dividiram-se. Sansão Coelho, um dos entrevistados, «lamenta que “pouco se tenha ouvido deste fado de Coimbra, cada vez com menor número de cantores em especial jovens”,» e «lamenta, também, que não tenha entrado, em simultâneo, na candidatura e que o fado de Lisboa tenha “esquecido o seu irmão ou primo coimbrinha … e que aquele não venha diabolizar o de Coimbra e retirar-lhe espaço de divulgação”» (Franklin, 2012). O diário informa ainda que, na opinião de Jorge Cravo, «”Coimbra não está na candidatura. Nem tinha de estar. Não é possível afirmar-se a nossa diferença quando convém e, depois, por questões de comodismo e marketing, querer apanhar a última carruagem do fado”» (Franklin, 2012). No seu próprio website (http://seccaodefado.net/), a Secção de Fado da Associação Académica de Coimbra (SF/AAC) parece reconhecer que “a Canção de Coimbra é uma expressão musical difícil de definir” (SF/AAC). E acrescenta que isso se deve “não só pelas vastíssimas influências musicais e culturais que geraram a sua raiz, mas também pelo infindável rol de sentimentos que no ouvinte desperta” (SF/AAC). Uma definição deste género não é aquilo que se pretende. E surge a questão: Secção de Fado que parece só referir a “Canção”?


Esta dualidade entre “Fado” e/ou “Canção” de Coimbra, pelo acima referido, e como se demonstrará nos posts seguintes, tem certamente uma carga identitária muito forte, de uma prática musical que se pretende representativa da cidade (ou pelo menos de uma parte dela…), e com um nome próprio que se demarque do Fado (de Lisboa), e daquilo que ele representa, e terá representado ao longo do último século. Por outro lado, e num tempo de grande interesse por parte de algumas entidades no reconhecimento de Património(s) Imaterial(ais), o já divulgado “Fado” poderia constituir uma denominação que facilitara o reconhecimento de determinadas práticas enquanto Património Imaterial de Coimbra, e da Humanidade. Assim, será o termo “Canção de Coimbra” utilizado para denominar o objecto que aqui estará em foco, e procurando aliás, referir como esta própria questão, e outras, surgem em determinados períodos.


Na transição do século XIX-XX



O aparecimento do “Fado de Coimbra”, na opinião de Luís Castela (2011), é frequentemente associado ao nome de José Dória (1824-1869). Tocador de viola toeira (também conhecida por viola de arame ou banza) e detentor de uma série de matriculas na Universidade de Coimbra, sendo a mais significativa a que realizou no ano lectivo de 1841/1842 e prossegui até 1845/1846, em medicina, que pela sua prática acabaria por ficar também conhecido por “médico dos pobres” (Lopes, 2011). Rui Lopes, apresenta-o como “mais um nome do Fado/Canção de Coimbra” na newsletter do sítio da web da Universidade de Coimbra. No entanto, no seu trabalho a respeito d’A Canção de Coimbra como Património Imaterial enuncia três nomes, e nenhum deles é o de José Dória (Lopes, 2011). Augusto Hilário (1864-1896) e Gonçalo Paredes (1873-1915) são para ele, as figuras de maior relevância, e uma terceira, Augusto Resende (Lopes, 2011). Augusto Hilário, estudante de medicina, e Augusto Resende, estudante do Liceu de Coimbra, são uns dos responsáveis pelas letras (Lopes, 2011). Na voz surge novamente Hilário, e na guitarra Gonçalo Paredes (Lopes, 2011). Rui Lopes (2011) refere ainda que o Fado Hilário terá sido legado pelo próprio Augusto Hilário, e no entanto, Luís Castela (2011) afirma que o tema nunca teria sido cantado por Hilário, pois era resultado da junção do “Fado Serenata”(1984) e de “O Último Fado” (1895), ambos da autoria deste, mas cantado por Manassés Ferreira de Lacerda Botelho (1885-1962). Outros nomes como o de João de Deus, Cândido Viterbo, Augusto Gil e Vicente Arnoso, surgem como autores da Canção de Coimbra na viragem do século. De assinalar ainda, a criação do Orfeão Académico de Coimbra em 1880 e da Tuna Académica da universidade de Coimbra em 1888, esta última, à data da sua criação incorporava Augusto Hilário (Lopes, 2011).

Fim da primeira parte.

Video 1: Balada do V ano jurídico de 1989


Nota: Este vídeo constitui uma amostra do que é considerado na actualidade e até hoje o "Fado de Coimbra", não sendo alusivo ao período referido neste primeiro post


Vídeo 2: Fado Hilário

Obras Citadas:




Castela, L. P. (2011). A Guitarra Portuguesa e a Canção de Coimbra: Subsídiospara o seu estudo e contextualização. Dissertação de Mestrado em Estudos Artísticos (Estudos Musicais), apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Franklin, A. (2 de Janeiro de 2012). Diário As Beiras. Obtido em 30 de Maio de 2013, de www.asbeiras.pt: http://www.asbeiras.pt/2012/01/fado-de-coimbra-e-patrimonio-da-humanidade/
Lopes, R. (2011). José Dória. Obtido em 3 de Junho de 2013, de Universidade de Coimbra: http://www.uc.pt/antigos-estudantes/info/cancao_coimbra_folder/cancao_coimbra_docs/jose_doria
Lopes, R. P. (2011). A Canção de Coimbra como Património Imaterial. Trabalho elaborado no ânbito da disciplina de Património Cultural, do Curso de 2º Ciclo de História, Especialização em Museologia.
Pelouro da Cultura-AAC. (2002). Canção de Coimbra: Testemunhos Vivos. Coimbra: Coimbra Editora.
SF/AAC. (s.d.). Ínicio. Obtido em 01 de Junho de 2013, de Secção de Fados da AAC: http://seccaodefado.net/home.php?module=inicio

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Olá, tudo bem contigo @martusamak? Parabéns por seu post e obrigado por usar nossa nova tag #fazendohistoria. E é claro, de participar do Desafio! Ah, que lindo! Meu padrasto (que é português) me apresentou o Fado, que maravilha poder saber mais sobre isso. Obrigado por me dar essa oportunidade e com toda a comunidade. Eu tenho mais perguntar do que comentários. Sinta-se a vontade para responder apenas o que quiser, está bem? O Fado só foi reconhecido como “Património Imaterial da Humanidade” em 2011 em Lisboa? Já era reconhecido nacionalmente, ou essa foi a primeira vez que foi reconhecido? Cada cidade tem seu próprio Fado com características específicas? Outra curiosidade é em relação a essa "carga identitária muito forte" que você afirma. Conheço pouco sobre o Fado e creio que aqui no Brasil, no geral, ou as pessoas nunca ouviram falar, ou conhecem pouco. Se em algum momento no futuro, você puder explicar um pouco (no sentido geral ou nacional) o que é o Fado para a população portuguesa, seria muito interessante para a comunidade brasileira conhecer mais sobre essa riquíssima cultura.
Agora me ajudar aqui, porque tanta gente está chorando. Desculpa, mas eu não consigo entender direito a letra das músicas que eles estão cantando. Que bom que no segundo vídeo tem legenda! ˆ!ˆ

Que a Deusa Fortuna esteja do seu lado!!

Assinatura #fazendoHistória
Saiba mais!

Bem, @leodelara a resposta a cada uma das suas perguntas é uma tese de doutoramento! :D O Fado é uma questão muito complexa. Vamos por partes, tentarei ser objectivo:

  1. e 2. A história do fado "começa" mais ou menos no séc. XIX, em Portugal, nos arredores de Lisboa, sobretudo, mas acredito que também estivesse nos arredores da cidade do Porto. Porquê cidades? Porque era maioritariamente assistido e executado em bares e bordeis. Era uma forma de entretenimento urbana, muito associada aos considerados marginais da altura. Por isto, e apesar de se popularizar, no ínici o Estado Novo proibiu a sua execução publica, proibindo a própria guitarra portuguesa (isto, simplificando a história). Anos depois, o mesmo Estado Novo utiliza o Fado como simbolo identitário do país na promoção de Portugal no estrangeiro. O Fado voltou a ser diabolizado nos anos seguintes ao 25 de Abril, porque era associado ao Estado Novo. Hoje em dia voltou a ser utilizado e instrumentalizado como siímbolo nacional.


    Ou seja, acho que respondi à sua questão. Sim, ele já foi reconhecido várias vezes, em contextos e com conotações muito diferentes (muitas vezes antagónicas).

  2. Como expliquei acima, o Fado é associado normalmente com o meio Urbano. Em Portugal do séc. XX destacou-se, ou fizeram por se destacar o Fado em Lisboa e em Coimbra. Depois de ouvir a Balada do V Ano Jurídico que publiquei no primeiro post, vá ouvir um fado de Lisboa e vai perceber as diferenças, por exemplo, na colocação da voz. O Fado de Coimbra tem uma entoação mais lírica e menos popular. Mas isto também depende do interprete e do tema. Também há quem diga que se tocava Fado na cidade do Porto, mas não com a promoção de símbolo identitário como foi em Lisboa ou em Coimbra.
  3. A resposta 1. já resume isso. Mas para a semana vou tentar expor um muito pequeno resumo da história do Fado (de Lisboa) para que percebam melhor. Pensei que tivessem mais familiarizados com o tema e anestes posts assumi, como é meu hábito, uma posição mais crítica sobre a ideia de Fado.


    O Fado, meu caro Leo, muito mais do que ser um veiculo de emoções, paixões, desgostos e culutra, é um instrumento nas mãos dos que tem poder para lhe decidir o futuro. A música, a cultura, apenas acontecem, não param para pensar se é Património. Património é sinónimo de monetarização e usurpação.

PS: Na balada do V ano jurídico, os alunos estão a chorar porque é o final do curso para muito. Representa o final de uma fase. Do papel de estudante, que agora se lança à vida, ao mercado de trabalho. É como que um ritual de passagem. Depois da intensa convivencia que se opera em Coimbra, que inspirou Luís de Camões. E eu diria que 95% dos estudantes de Coimbra não ficam em Coimbra, deixando para trás amigos, companheiros, relações, etc...

Muuuuuito obrigado pela resposta mais do que completa. Acho impressionante (e me fascina muito) como a história cultural está constantemente atrelada a história socioeconômica e política. Digo isso porque aqui no Brasil ainda existem historiadores que permanecem querendo separa-las. O que considero precário para a produção histórica em si. Abraço e ficarei de olho em seus próximos posts!

Very interesting posts you have here.

Thank you. Glad you liked it. Can you read portuguese?

Noo, unfortunately not really, I had to give it a try with that google translate...part by part.