Defendi Hitler? Respondendo ao e-mail de um judeu

in pt •  7 years ago 

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▬ Adolf Hitler / Daily Mirror ▬

Não sei se por aspiração ou por imbecilidade, o fato é que costumo tocar em tópicos polêmicos. Quem me conhece sabe: se algo me incomoda, eu boto a boca no trombone, e não ligo muito pras mais diversas consequências, como as inúmeras vezes em que fui bloqueado por 30 dias no Facebook, ou por sofrer exclusão social em algum meio de convívio regular, do ensino médio ao superior, por dizer o que penso.

Como um defensor da liberdade de expressão de ideias que podem incomodar a qualquer pessoa neste mundo, acaba sendo comum que eu mesmo tenha ideias que incomodem muita gente. Assim, mais comum que o Facebook me bloqueie é que os próprios usuários da rede o façam.

E desta vez não foi diferente: um contato que criei há alguns anos na faculdade, depois de tanto tempo, resolveu me enviar um e-mail defendendo seu ponto de vista sobre dois textos que eu teria escrito. Para ele, o primeiro texto, que o fez me excluir da rede social, foi um em que eu teria defendido Hitler como um grande estadista. O outro texto, menos ousado, defende que a religião deve ser apenas um detalhe de nossas vidas, e nada mais que isso. Como judeu, ambos os tópicos, vendo pontos positivos em Hitler e defendendo a não-prioridade da religião, o deixaram profundamente incomodado a ponto de que tal leitor me escrevesse um e-mail.

No intuito de esclarecer as coisas para todos que possam ter pensado o que tal leitor pensou de mim, replico seu e-mail na íntegra abaixo — ocultando seu nome pois o importante não é a identidade da pessoa, e sim sua mensagem. Após sua mensagem, deixarei minha resposta. Espero que se interessem por este debate.


Salve, Alysson

fui aluno do curso "diálogos entre ocidente e oriente", na PUCRS. Dali, nos adicionamos e acabei te excluindo do meu facebook após ler um pequeno post teu em que tu aparentava falar com condescendência sobre Hitler. Entendo que muitas pessoas se refiram à Hitler como um gênio, ou um grande estadista - eu pessoalmente acho que não é à toa o fato dele encarnar o mal na nossa cultura (sendo um desafio o enxergar como uma pessoa que estava rodeada de muitas outras). Fico pensando que a grandiosidade das conquistas de Hitler não pode ser pesada sem levar em conta seus genocídios e os roubos praticados pelo seu regime.

Acho que seria revoltante para muitas pessoas lerem que a ideia de que Stalin seria um gênio, ou Pol Pot, ou que a invenção da bomba atômica foi genial. Em resumo, acho que é problemático ser condescendente com alguém que simbolizou de maneira tão clara uma oposição ao que podemos chamar, na nossa cultura, de humanismo. Claro, sou judeu por parte de mãe e meu olhar é permeado pela minha subjetividade. Mas, fico impressionado, também com os estereótipo que ainda carregamos: o banqueiro judeu é pior que o banqueiro saudita? ou que o banqueiro suíço? De qualquer modo, te mando isso para que tu possas - caso queira - ver meu ponto. Não acho que o extermínio dos judeus (ciganos, deficientes, homossexuais, pessoas contrárias ao regime) tenha sido a única coisa terrível que ocorreu na II guerra, mas não tolero condescendência com o regime que encabeçou o racismo e a violência que assolaram a europa.

De qualquer modo, por incrível que pareça, não foi por isso que decidi te escrever. Recebi um texto teu em que tu afirma que a religiosidade "deve" ser um detalhe de um indivíduo. Te pergunto: porque? Não são a religião nem a espiritualidade que geram conflitos, mas sim disputas humanas por poder e recursos. Não sei se tu acredita no progresso de uma sociedade cientificista, mas acredito que, do ponto de vista ecológico e humano, esse "progresso" está nos levando para lugares bem ruins.

Além disso, individualmente, inúmeros indivíduos sofrem por não verem sentido na vida. Isso pode muito bem ser justificado pela nossa cultura materialista e hedonista. Porque a religião é necessariamente um problema?

Além de judeu, sou budista e de esquerda - calma, não sou a favor da ditadura do proletariado, nem nenhuma ditadura - então, realmente, vendo teus outros textos, acho que não temos muito em comum. Só queria te dar esse retorno: proselitismo religioso, assim como proselitismo ateu são formas de tentar impor a ideia de que algo é melhor para todos. Vivemos um mundo em que a religião e a etnia estão muito ligadas, e as religiões, etnias e regimes políticos tem uma influência gigante em cima dos indivíduos. Para finalizar, a bancada evangélica não existe para suprir uma necessidade espiritual. A bancada evangélica surge como a força política da coalizão de inúmeras seitas que se beneficiam da pobreza e ignorância do povo, em acordo com nosso sistema corrupto e historicamente desigual, truculento.

Enfim, aqui expressei minhas opiniões críticas sobre dois momentos em que tive acesso a ideias tuas e que não gostei. (infelizmente, não lembro exatamente do primeiro momento, mas lembro que me incomodei.)

Fica aqui meu respeito por ti e por qualquer pessoa disposta a estudar e se expressar, com o desejo sincero de mais reflexão e aceitação da diferença
e menos autoritarismo no mundo.

atenciosamente


Salve, meu caro!

Lembro de ti no curso de extensão sobre budismo, espero que tenha aproveitado ao máximo e que surjam outras oportunidades.

Quanto ao post sobre Hitler, saiba que enquanto você não lembra exatamente do momento em que falei sobre isso, eu sequer tenho ideia de que tenha falado — ainda mais com condescendência a estadista algum. Qualquer pessoa que me acompanha sabe que, em termos políticos, sou liberal social, e às vezes inclusive flerto com o anarcocapitalismo pela repulsa que cultivo a líderes políticos. Então pelo que me conheço e como eu me posicionaria a respeito de Hitler e de qualquer outro do tipo, considero que teu incômodo em algum momento em que eu tenha mencionado Hitler mais tenha a ver com você estar permeado de subjetividade judaica do que com alguma irracionalidade da minha parte (até porque mesmo que eu reconhecesse em Hitler um "grande estadista" seria possível fazer isso sem ser antiético nem irracional — julgar méritos e deméritos de pessoas a partir de critérios específicos, ignorando aspectos do Todo, é algo que qualquer um pode fazer sem problema algum).

Sobre os estereótipos acerca de judeus: esse é um problema que atinge ambos os espectros políticos, embora seja particularmente interessante dentro da esquerda. Marx mesmo em seu livro Sobre A Questão Judaica já deixava claro o que pensava dos judeus (já no começo do livro chamando judeus de egoístas e dizendo que sua religião é inimiga do Estado), e isso escoa até hoje quando se fala na briga entre Israel e Palestina — difícil encontrar militantes de esquerda defendendo Israel, e os estereótipos recheiam o conflito aí.

Quanto ao meu texto defendendo que a religião seja um detalhe, é bem simples: em termos religiosos, meu ateísmo me torna humanista secular. Isso significa dizer que a felicidade humana e o sentido da vida que podemos atribuir a nossas próprias vidas não depende e nem precisa depender de religião alguma; antes, a própria profusão de variações de interpretações sobre uma mesma religião, bem como a diversidade de religiões no mundo todo, apenas atestam a variação e diversidade dentre os próprios indivíduos. Que uma etnia esteja vinculada a um grupo humano mais reflete um acidente cultural (aqueles humanos que lá estão não escolheram estar lá, apenas nasceram onde nasceram e foram educados conforme as crenças regionais) do que um reflexo de aspirações livres e consentidas daqueles indivíduos que, em princípio, devem compartilhar de todos os direitos humanos que lhes permitam, inclusive, ser e se autoproclamar independentes de religião e mesmo de religiosidade. Saiba que quando você afirma que "não são a religião nem a espiritualidade que geram conflitos, mas sim disputas humanas por poder e recursos", a verdade dessa proposição não pode ser desvinculada do fato de que todas as nações religiosas que entram em conflitos geopolíticos fazem da religião sua bandeira de guerra — inclusive Israel, que não poupa em se utilizar do argumento do antissemitismo a seu favor.

Agora, quando você menciona "sociedade cientificista" logo após a citação acima referida, saiba que está entrando numa falsa dicotomia bastante comum. Crer ou não em religião não me torna nem mais nem menos cientificista (e uso o termo aqui sem juízo de valor, pois não é consenso que ele signifique algo ruim, como você parece empregar — Susan Haack o despreza, enquanto Mario Bunge o venera). Na verdade, existem muitos ateus anti-cientificistas, que se situam no geral no espectro político da esquerda, contestando o progresso científico à luz de bizarrices metodológicos como o anything goes de Feyerabend ou mesmo pregando algum relativismo tanto cultural (que desmerece a ciência em vistas de ser algo "ocidental") quanto epistemológico, que lhes faz acreditar que o conhecimento que descobrimos cientificamente vale tanto quanto aquele "conhecimento" que acreditamos valer (homeopatia, parapsicologia, psicanálise, etc.)

Quanto à bancada evangélica: ela é apenas um reflexo de uma sociedade que se acostumou a fazer da religião algo necessário, sem o qual o sentido para a existência está perdido — e pode ter certeza que isso não é um problema do proselitismo ateu.

Enfim, se deixei algo sem resposta e que você gostaria de me ver responder, fique à vontade para retornar o e-mail. Minhas saudações a ti e a todas as pessoas que se interessem em estudar e se expressar.

Ah, e que nossa aceitação da diferença seja posta em prática, pois excluir pessoas das redes sociais apenas por uma divergência sobre a qual o excluído não teve oportunidade de replicar é a prova de que não se faz o que se prega.

Abraço!

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  ·  7 years ago (edited)

Mas Hitler foi um grande estatista mesmo.
Grande ≠ bom.
Grande = muito.
Essa visão de Hitler como encarnação do mal é descabida, e cega as pessoas pra qualquer análise racional que se possa fazer.
Muitas das disputas por poder e recursos era motivadas por motivos religiosos mesmo (ou algo que transcende da religião, como um sistema ético baseado nela).
E outra coisa que cega as pessoas é essa dicotomia que você mesmo citou, ser contra algo ou negar algo ≠ ser a favor do contrário ou afirma-lo.


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Salve Alysson. Legal a iniciativa do teu colega em entrar em contato contigo para discutir o assunto, dessa forma sem ofensas e desnecessidades. Isso é um tanto raro até.

Quanto aos questionamentos e pontos apresentados, sobre Hitler não há muito o que dizer não é mesmo, você definiu bem ali, e realmente parece que a subjetividade dele deu esse tom para algo que você nem lembra de ter escrito.
Quanto a religião, aí realmente é um negócio complicado de afirmar qualquer coisa, assim como já fui vegetariano por muitos anos, já fui ateu também, haha. Hoje não sou nada. E com "nada" quero dizer que não tenho uma crença específica apesar de já ter experimentado experiências de intensa religiosidade/espiritualidade/fenômenos paranormais e assim por diante. Acredito que o meu ápice de lucidez apenas me confirmou que nada sei. Não sei se existe qualquer coisa ou não. Mas indiferente de opinião pessoal sobre isso, o que tenho aprendido lendo um pouco de Campbell, Jung e outros pesquisadores da área é que ao meu ver, a religião, a crença no oculto, é inerente ao homem, é simplesmente impossível prever um ateísmo brotando numa tribo isolada ou em qualquer tribo que já passou por aqui. Seja em que nível for, o homem terá uma desconfiança do além, alguma coisa.
O que penso a respeito da problematização das religiões e seus resultados sociais em termos de violência e guerra tem a ver com o andamento cultural da mesma, a evolução de um mito dentro de uma sociedade com poderes, onde a informação muda de forma e de força. Algumas fatalidades como o fato de religiões violentas dominarem massas muito maiores fazem com que eu sinta uma certa urgência em uma espécie de extermínio humano para casos insolúveis de alienação religiosa, haha se você se baseia no humanismo deve achar absurdo isso, mas hoje em dia eu não acho mais. Porém, claro, estamos falando de uma realidade distópica absurda. Tudo que se pode e se devia fazer é buscar um meio de educar as culturas jovens a compreender regras básicas de tolerância e respeito. Não precisa aceitar, pré-conceito é ótimo, só não viole os limites, não viole a vida, no mais rezem como quiserem.

Sim... Realmente foi uma atitude fora da curva. Eu nunca tinha recebido um e-mail assim, hahaha, confesso que foi bastante interessante — me senti aqueles intelectuais que escrevem livros, são lidos e vários leitores começam a mandar e-mail falando sobre a obra :P

Você falou algo bem importante sobre ateísmo: não parece ser a condição natural do homem. Antes, a evolução de qualquer sociedade parece tornar indispensável a ideia de que a religião é um passo necessário para a construção de uma civilização. E isso não é um demérito para o ateísmo; me parece, inclusive, um ponto que favorece a perspectiva ateia: afinal, se o ateísmo é como Feuerbach entendia, um passo posterior à religião, então quanto mais evoluída é uma sociedade, mais ateia ela tende a ser, por encontrar razões outras para sua própria existência que independem da crença em divindades e mistérios de tipo místico. E isso parece ser confirmado pelo próprio cientificismo de que o judeu do e-mail fala, pois é próprio de uma sociedade repleta de liberdade científica que uma comunidade de ateus brote e se estabeleça firmemente.

Agora, só não dá pra descartar a tese do Yuval Noah Harari de que, mesmo sem religião, ainda assim somos seres que precisam, necessariamente, cultuar símbolos, e que a religião apenas fortaleceu esse nosso lado simbólico durante milênios — não à toa hoje se fala inclusive do dinheiro como sendo uma espécie de Deus, o que pode se encaixar também no próprio apreço ao método científico como sendo o guia para as respostas de que precisamos.

Enfim, grato pelo comentário. Divergindo ou não, o importante é esclarecermos sempre nossas razões, pois se o conflito surge por qualquer motivo, especialmente religioso, é por um comum desentendimento das partes. Abraço!